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“Música calada que enamora” |
Aproxima-se a Páscoa, um período em que muitos são convocados ao recolhimento, à meditação e à introspecção. A música pode ser um dos melhores meios para facilitar esse caminho. |
A semana passada escrevi aqui sobre grandes artistas de catálogos exíguos. O compositor que trago hoje poderia ter figurado nessa newsletter. |
Ultimamente, tenho-me dedicado à escuta e à interpretação (caseira, é claro) do repertório do catalão Frederic Mompou (1893-1987), naquilo que tem sido um caminho surpreendente de descobertas e sinapses. |
Há coisa de dois meses estive uns dias de passagem por Barcelona, onde fiz questão de passar pela Fundação Joan Miró. Não sou particularmente apaixonado pela obra do pintor, mas intriga-me o suficiente para lhe dedicar umas horas de atenção. Melhor dizendo, não gosto dela por inteiro. Há telas de Miró que me tocam, como o tríptico A Esperança do Condenado à Morte (na imagem), que duvido que possa deixar alguém indiferente, mas outras tantas francamente passam-me ao lado e não tenho qualquer pudor em admiti-lo. De resto, sempre achei que há o mesmo grau de iluminismo e coolness em gostar ou não gostar de algo, desde que seja axioma de um caminho de reflexão feito com espírito aberto. Adiante. |
Meses mais tarde, dou por mim sentado ao piano, a folhear um volume da obra completa para piano de Mompou, partitura que comprei há anos e à qual nunca dei uso. A semana passada, fruto de uma greve da função pública, tive dois dias de trabalho cancelados no Teatro São Luiz, em Lisboa, onde estou a dirigir a ópera Na Colónia Penal (em cena até dia 26 deste mês). Perante a frustração desse revés — pois fora mais de um mês de ensaios intensos e, logo após estrearmos numa quinta-feira à noite, a greve de sexta e sábado mandou-nos todos para casa —, dei comigo a ir à minha biblioteca de partituras sacar este volume e levá-lo para o piano. |
E que espanto. Já conhecia a música de Mompou, assim como o seu lugar na história da música, em particular enquanto continuador da tradição essencialista e introvertida de Erik Satie, de quem sou fã devoto, ou não tivesse dedicado à sua obra incontáveis programas e referências em todos os formatos, da rádio à televisão, passando por um Encontro com a Beleza, na Rádio Observador. |
No entanto, não sabia que a música de Mompou começa por ser poética ainda no papel, antes de começar a ser música. Tal como Satie, Mompou dispensa informações supérfluas na página, livrando-se de parafernália técnica como a armação de clave, a indicação de compasso ou as barras de compasso. Um pouco como as novas expressões escritas que dispensam o uso comum de maiúsculas e pontuação, dizendo adeus também à mancha convencional de texto no papel. |
O resultado é que certas partituras de Mompou parecem neumas medievais: simples notas a flutuar num pentagrama, livres de toda a tinta extra que as partituras costumam carregar em volta dessas notas. Para além disso, Mompou utiliza expressões lindíssimas, muito mais originais do que os costumeiros allegro ou cantabile. Por exemplo, quando, chegado ao fim, o pianista deve voltar ao início e tocar a peça da capo, Mompou indica: “Répétez, je vous prie”. |
É difícil explicar o efeito visual que as suas partituras têm a quem não é versado na leitura musical, por isso deixem-me colocar a questão desta forma: as partituras e a notação musical de Mompou assemelham-se a certos trabalhos de Joan Miró. Ambos traduzem-se numa atmosfera de recolhimento que nos convida a entrar na obra, em vez de sermos abordados pela sua presença. Há música que se impõe sobre nós, como Beethoven ou Wagner. Há pintura que se impõe sobre nós, como El Greco ou Caravaggio. E depois há este outro lado da força, que nos chama de forma cândida, quase passando despercebida no meio do ruído do dia-a-dia. |
A música de Mompou, nesses dias mais ou menos mortos, ajudou-me a relacionar-me melhor com a arte de Miró. E qual não foi a minha surpresa quando constatei que nasceram com apenas quatro dias de diferença, ambos na mesma cidade de Barcelona, no ano de 1893. O mundo que partilham e onde fizeram o seu percurso foi exactamente o mesmo, com incursões académicas por Paris, onde aprenderam nas escolas oficiais e no convívio boémio, ou não fossem jovens artistas na capital francesa do início do século XX. |
De toda a obra de Mompou, a minha atenção recaiu sobre a sua colectânea mais famosa de peças para piano: Música Callada. Quase toda a música que escreveu — e não escreveu assim tanta — é para ser tocada no piano, como dei a entender no começo deste texto. Música essa que Mompou tocava no recolhimento da sua casa ou em petit comité para amigos. Nunca se apresentou como pianista em público. O máximo que fez foi deixar-se gravar e autorizar a edição em disco mas quando isso aconteceu tinha já passado os oitenta anos. |
Esta Música Callada toma o título a partir de escritos de João da Cruz, santo espanhol da segunda metade do século XVI, correspondente e discípulo de Santa Teresa de Ávila. Estamos portanto em águas místicas, de enorme devoção e introspecção. A expressão “música calada que enamora” surge num dos Cânticos Espirituais de São João da Cruz e inspira o compositor a dar-lhe forma em verdadeira música que, rente ao silêncio, convida a um exercício de meditação que vai além da mera fruição estética. |
Mompou publicou quatro volumes de peças com o título Música Callada, escritos entre 1959 e 1967, curiosamente coincidindo com o período da mais aguerrida vanguarda na Europa. Se nos anos 1920 a sua música tinha granjeado sucesso em Paris, nomeadamente enquanto possível continuador do caminho de Debussy, agora Mompou remetia-se a um lugar de esquecimento ao perseverar nesta música virada para dentro, que não trazia nada de novo do ponto de vista da experimentação. Num tempo em que a música se tornara mais agressiva, complexa, ruidosa e mecanizada, Mompou tornou a sua mais despida, essencial, silenciosa e simples. |
A verdade é que hoje ainda ouvimos Mompou, enquanto que os vanguardistas do pós-guerra parisisense, como Barraqué, Nono ou Maderna são cada vez mais nomes consagrados apenas aos compêndios de história da música, cuja presença se faz em nota de rodapé e não como música que nos dá prazer ouvir. |
Num período que convida ao recolhimento e à meditação, seja pela época pascal ou pela escuridão das notícias que nos chegam todos os dias, não posso deixar de exortar os leitores a que descubram ou se reencontrem com a música de Mompou. Já agora, en passant, gostaria de dizer que devo a descoberta de Mompou a Bernardo Sassetti, que lhe prestou tributo no disco Nocturno, editado em 2002 em trio com Alexandre Frazão e Carlos Barreto. |
Assim, fica o convite: |
Ouçam, de Mompou, o ciclo Música Callada. A minha versão preferida é a do pianista catalão Josep Colom, que podem ouvir no Spotify. |
Para o tributo de Sassetti, o disco também está no Spotify, para quem preferir a escuta digital. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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