|
|
Música contra a ignorância |
Falar da West-Eastern Divan Orchestra é um pouco como contar a história da civilização do norte global: juntam-se um argentino-israelita (Daniel Barenboim) e um palestiniano-americano (Edward Said) e o resultado é, em 1999, o nascimento desta orquestra que afirma, a todo o custo, não ser um projecto político. E passado quase um quarto de século, eis que a Europa vai precisar da sua própria West-Eastern Orchestra. |
São duas mentes ímpares as que estão por detrás desta ideia: Daniel Barenboim é o pianista prodígio, depois tornado maestro. O jovem marido apaixonado de Jacqueline du Pré, cujo casamento de vinte anos o ligou até à morte prematura da violoncelista britânica. O subsequente conquistador dos palcos e dos pianos. O poliglota, o globe-trotter, o pedagogo e, por fim, o embaixador da paz. Várias vezes nomeado à boca pequena para o Prémio Nobel da Paz, não há orquestra que não tenha dirigido nem peça que nunca tenha tocado. |
Já Edward Said foi um intelectual de altíssima craveira, autor de vários livros, entre os quais Orientalismo, texto fundamental para compreender e re-situar o ponto de vista no que toca à relação do ocidente com o oriente e vice-versa. Agitador pela causa da Palestina, é pai dos estudos pós-coloniais, cujo departamento criou na prestigiada Universidade de Columbia, nos EUA. |
A premissa de ambos era simples: uma orquestra, com o mais alto nível artístico, que congregasse jovens músicos de Israel e dos países árabes do médio oriente, mas também do Irão, para provar que a concórdia e a amizade são possíveis entre os povos, como a música pode bem demonstrar. A orquestra toma o nome de uma colectânea de poemas de Goethe, e é sob esta alçada iluminista que rapidamente começou a somar prémios e reconhecimentos pelos méritos em prol do entendimento entre os povos. |
Nas palavras do próprio Barenboim, no entanto, este teima em não ser um projecto político. Pelo menos não no sentido em que entendemos a política, feita por políticos, dominada por partidos e agendas em circuito fechado. É, sim, um projecto político se entendermos a política como uma forma de estar, uma manifestação da cidadania. |
Eis o que é a orquestra, segundo as palavras do próprio maestro: |
“Não é uma história de amor nem de paz. Tem sido muito elogiosamente descrito como um projecto para a paz, mas não o é. Não vai haver paz caso estes jovens toquem bem ou menos bem. A orquestra é um projecto que foi concebido contra a ignorância. Um projecto que sublinha o facto de que é absolutamente essencial que as pessoas se conheçam, se entendam e saibam o que pensam e sentem entre si, sem terem necessariamente de estar em acordo. Não estou a tentar convencer os músicos árabes a partilhar o ponto de vista israelita nem os israelistas a partilhar o ponto de vista árabe. O que quero é criar uma plataforma onde ambos os lados possam estar em desacordo sem ser preciso recorrer a armas.” |
A sede actual da orquestra é em Sevilha, onde todos os verões se juntam músicos de países como o Egipto, Irão, Israel, Palestina, Jordânia, Líbano ou Síria, mas também espanhóis, claro, ou não se estivesse numa das cidades com maior cruzamento histórico de culturas entre as religiões e tradições muçulmana, cristã e hebraica. |
Entretanto, a visão dos dois criadores produziu ainda uma academia, a Barenboim-Said Akademie, em Berlim, dedicada ao ensino musical ao mais alto nível para alunos das mesmas proveniências geográficas, e produziu também um livro de ensaios, Paralelos e Paradoxos, Reflexões sobre Música e Sociedade, publicado em 2002, alguns meses antes da morte de Said. |
O que é certo é que a orquestra, sozinha, não parou as guerras nem travou os atritos israelo-árabes. Nunca o poderia fazer, como de resto Barenboim tão eloquentemente sublinha. Segundo uma reportagem no The Guardian de 2008, há músicos israelitas que apenas se juntam a esta orquestra pelo privilégio de poderem tocar com Barenboim, preferindo abster-se do diálogo e confrontação de ideias com os colegas músicos da Palestina. É inevitável que, uma vez ali dentro, aquele grupo de pessoas espelhe os princípios e ensinamentos que trazem de casa. No entanto, o bem que já fez, em 24 anos de actividade, é totalmente merecedor do respeito e confiança que tem recebido por parte de governos, instituições e salas de concerto, das Nações Unidas ao Vaticano, da Philarmonie de Berlim ao Teatro Colón em Buenos Aires. |
De resto, a luta contra a ignorância é de facto a bandeira certa para uma orquestra como esta. Porque, como uma vez vi comentar o cardeal José Tolentino Mendonça, não há guerra que não esteja fundada na ignorância. |
Em Sevilha, a orquestra desenvolve vários projectos pedagógicos e em comunidade. Os seus músicos vão crescendo e assumindo posições noutras orquestras. Tornam-se professores, profissionais em vários pontos do mundo e, com sorte, devolvem um pouco daquilo que receberam enquanto jovens neste coletivo. No fundo, é só isto que se pede. Tanto e tão pouco. |
Na Europa, parece-me cada vez mais evidente que está na hora de surgir uma, duas, três, cinquenta orquestras assim. Não apenas para juntar jovens russos e ucranianos, separados pela mais fratricida, ignóbil e ignorante guerra, mas também de todos os países balcânicos, da Europa de leste e central. A animosidade que os estados bálticos sentem em relação aos russos está em níveis recorde. A atitude que a Sérvia demonstra para com a Europa central é de crescente desprezo. A Hungria parece não saber que jogo jogar e a Bielorrússia é um país-fantoche. Se, por algum raio de iluminação fosse possível, uma vez terminada esta guerra — porque, como todas as guerras, também esta acabará — juntar estes jovens e simplesmente pô-los a tocar música juntos, isso já seria um grande feito político, se bem que meramente artístico. |
A política tem, realmente, de sair fora de portas e estar na vida de todos, através de atitudes cívicas que constroem o mundo em que vivemos. É por isso que as orquestras podem ser um potente aliado na causa democrática. Em Portugal, temos projectos de maior escala, como a Orquestra Geração, excelente exemplo da democratização da cultura e de equidade social, ou projectos locais, como a Orquestra dos Navegadores, uma iniciativa conjunta da Orquestra de Câmara Portuguesa e do município de Oeiras, desenvolvida no Bairro dos Navegadores. Ou ainda projectos localizados e em menor escala, como a Cértima Orquestra, de Oliveira do Bairro, que integra imigrantes numa experiência musical agregadora e colectiva. Sem querer puxar a brasa à minha sardinha, não posso deixar de referir a Orquestra Sem Fronteiras, de que sou fundador, que actua no interior do país e em acção transfronteiriça, juntando jovens da raia ibérica dos dois lados da fronteira e que em 2022 venceu o Prémio Carlos Magno para a Juventude, uma iniciativa do Parlamento Europeu que visa, precisamente, premiar organizações jovens que promovem os valores de união na Europa. |
Quando, em Maio de 2022, recebi na Alemanha o prémio das mãos de Katarina Barley, vice-presidente do Parlamento Europeu, esta referiu no seu discurso algo parecido com aquilo que tenho estado aqui a reforçar: a política não é para ser exercida apenas por políticos. A música pode dar disso exemplo e é um passo em frente no reconhecimento de que, tal como todos temos a nossa pegada carbónica, também temos uma pegada política e uma pegada cultural. Somos responsáveis pelo nosso metro quadrado, independentemente daquilo que fazemos como profissão. |
E eu, enquanto maestro, músico e cidadão, quero é ver mais orquestras como estas na Europa e no mundo fora. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
|
|