Esta newsletter é um conteúdo exclusivo para assinantes do Observador. Pode subscrever a newsletter aqui e fazer aqui a sua assinatura para assegurar que recebe as próximas edições. |
Todos falam de populismo. O populismo tornou-se mesmo na muleta do PS e de António Costa – muleta em todos os sentidos. Mas poucos querem saber o que é o populismo ou se ele existe mesmo em Portugal. |
|
Há limites para tudo – e quando António Costa, naquele que foi provavelmente a sua mais desastrada prestação parlamentar desde que é primeiro-ministro, sugeriu que até Rui Tavares era um populista, mesmo os mais indulgentes acharam que tinha ido longe demais. Nessa altura ficou claro que não restava outra estratégia ao chefe do Governo senão gritar, a tudo e todos, “agarra que é ladrão”. Por outras palavras, só lhe restava o argumento de que toda e qualquer critica que lhe fizessem seria populismo. |
Já se conhecia esta linha de defesa – mais exactamente, esta estratégia: há muito que o PS, em geral, e António Costa, em particular, tratam de dividir o mundo entre eles mesmos e “os populistas”. Em Portugal, na sua lógica, ou se está com o Governo ou se está com “os populistas”, e julgam que nem precisam de acrescentar mais nada para que caia uma nuvem de suspeição sobre todos os demais, eventuais cúmplices do Chega e de André Ventura. Também já se conhecia um primeiro resultado desse argumento – a actual maioria absoluta, conseguida muito à custa do medo do Chega, mas dependente não só dessa chantagem como limitada a uma votação historicamente baixa para conseguir a sempre almejada metade dos deputados mais um (o PS de António Costa elegeu 120 deputados ao recolher 41,3% dos votos em 2022, quando em 1999 o PS de António Guterres só elegera uns fatídicos 115 parlamentares apesar de ter chegado aos 44%). |
Seja lá como for, os socialistas agarram-se ao argumento como um náufrago à única tábua que lhes resta, apostando que dando protagonista ao Chega conseguem dois objectivos ao mesmo tempo – por um lado dividem o eleitorado à sua direita, tornando mais difícil a afirmação de uma alternativa; por outro lado concentram neles o voto à esquerda, como já sucedeu nas últimas eleições. Não há nada de particularmente novo nesta estratégia: na década de 1980 François Mitterrand fez tudo o que estava ao seu alcance para insuflar a Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen com o objectivo de dificultar a vida à direita tradicional e republicana e isso funcionou numa primeira instância antes de acabar, como acabou, na implosão do Partido Socialista francês e no crescimento de dois populismos gémeos, um à direita com Marine Le Pen, outro à esquerda com Jean Luc Mélenchon. |
Não cito o exemplo francês por acaso: fazer crescer radicais com o objectivo de tentar acantonar as alternativas mais moderadas já acabou mal mais do que uma vez. No entanto é isso mesmo que os socialistas, de António Costa a Augusto Santos Silva, têm feito, tendo reincidido este fim de semana (aqui e aqui). Pior: para António Costa há mesmo novos interditos de linguagem, para o primeiro-ministro quem quer que seja mais duro nas críticas que lhe dirige passa a ser… “um populista”. No debate desta quarta-feira o PSD foi acusado de populismo por lembrar as dúvidas sobre o comportamento de alguns membros do executivo, o mesmo aconteceu com a Iniciativa Liberal, e Rui Tavares foi acusado de populismo por, vejam lá, usar termos como “lamaçal” para descrever essas mesmas dúvidas. |
Estes interditos de linguagem são especialmente curiosos sobretudo se pensarmos que pela lógica de António Costa o populismo certamente terá como inspirador máximo o Eça de Queirós da “choldra” ou mesmo o António Guterres do “pântano”. Ou será que “lamaçal” é populista mas “choldra” e “pântano” já não são? Será que hoje ainda se pode escrever, como Eça em 1871, que o executivo “não governa, não tem ideias, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta”? Ou que “os lustres estão acesos; o país distraído; nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e acha-os impuros e nulos”? Ou ainda que “este governo não há de cair, porque não é um edifício – tem de sair com benzina, porque é uma nódoa”? |
Talvez não, talvez frases duras como estas fossem simplesmente proscritas como sendo “conversa de taxista”, até porque a pele dos socialistas é muito delicada como se viu nas suas reacções às críticas de Cavaco Silva. É verdade: foram palavras foram duras, muito duras mesmo. Mas em nenhum momento se sugeriram métodos antidemocráticos, como chegou a suceder com Mário Soares, que em 2013 escrevia, sobre o executivo de Passos Coelho, o seguinte: “os portugueses estão fartos e começam a pensar que sem alguma violência as coisas irão sempre de mal a pior. O Presidente que se cuide também…” |
Mas não, os socialistas não têm a pele grossa que se exige a quem governa em democracia, os socialistas não suportam quem engrosse a voz, pelo que usam e abusam das acusações de populismo, mesmo dirigindo-as contra a comunicação social e aquilo a que já chamam “os berros dos comentadores de televisão”. Fazem-no porque, ao contrário do que sucede com as ideologias estabelecidas, o populismo é algo indefinido, uma carapuça que parece servir a muitas cabeças pois é aquilo a que os cientistas políticos costumam chamar uma “ideologia de baixa intensidade” (leia-se Cas Mudde, por exemplo). Isto no sentido em que não está associado a um modelo específico de sociedade (como o liberalismo ou o socialismo), antes a uma divisão maniqueísta da sociedade, que vê dividida entre um povo idealizado e cheio de virtudes e elites arrogantes e corruptas. |
Mas se isto é uma boa definição para cientistas políticos, na política do dia-a-dia as acusações de populismo tornaram-se uma arma de arremesso usada sobretudo contra a direita radical e tudo o que ela faça. Figuras como Trump contribuíram muito para isso acontecesse, mas no meio deste nevoeiro não nos devemos esquecer que esta visão maniqueísta da sociedade não é um exclusivo da direita radical, tem mesmo velhos pergaminhos na esquerda mais extremista. Recordemos por exemplo o discurso do espanhol Podemos contra “a casta”, do grego Siryza contra “a oligarquia” ou do italiano “Cinco Estrelas” contra “os políticos”, isto só para falar de alguns exemplos europeus já que, se formos até à América Latina, há muito que aí o populismo de esquerda é dominante, tendo antiquíssimas raízes em movimentos como o peronismo. |
Mas usar o populismo como arma de arremesso política não é só demagógico por meter tudo no mesmo saco, pode também revelar-se uma prática perigosa. Aquilo que os socialistas estão a fazer, da forma como o estão a fazer, não resulta apenas numa promoção objectiva do Chega, apresentado como se fosse a única alternativa à governação de Costa – resulta igualmente numa normalização do “populismo” pois, a certa altura, corre-se o risco de banalizar a acusação e de criar a percepção de que todos os insatisfeitos com a governação acabarão por se sentir populistas. Basta que se sintam irritados com esta maioria, basta que achem que ela está a por em causa o normal funcionamento das instituições e a degradar a democracia, basta que se indignem com a corrupção, basta no fundo que desabafem contra “a choldra”, “o pântano” ou “o lamaçal”. |
O uso e abuso do populismo, como tudo na vida, faz mal à saúde, no nosso caso faz mal à saúde da democracia. |
Coisas que não sabemos sobre o nosso sistema de saúde |
|
A Fundação Francisco Manuel dos Santos continua a publicar ensaios sobre o nosso país que enriquecem o debate público e, não poucas vezes, nos surpreendem (declaração de interesses: também publiquei um ensaio nesta coleção). É o caso de um dos que acaba de sair, Saúde e Hospitais Privados em Portugal, de Miguel Gouveia, um professor de economia e políticas públicas na Universidade Católica. O título pode levar a pensar que este livrinho é sobretudo sobre hospitais privados, mas não é – é sobre o nosso sistema de saúde e como ele tem evoluído. É em especial sobre uma realidade muito pouco conhecida no país onde só se tecem loas ao SNS. Senão vejamos: |
Sabia que, em Portugal, o setor público paga dois terços da despesa em saúde, mas o setor privado é o prestador de mais de metade dos cuidados? Sabia que Portugal foi o segundo país da União Europeia com a maior taxa de necessidades de saúde não satisfeitas acumuladas durante a covid-19? E que a tendência de longo prazo aponta para a redução do peso do Estado como financiador e como prestador de cuidados de saúde? |
Foi com base nesta informação, e no conhecimento desta realidade e não apenas de eventos graves, como a morte de um bebé de onze meses num hospital do Algarve, que esta semana pude voltar a discutir no Contra-Corrente, com a ajuda do próprio Miguel Gouveia, porque é que são cada vez mais os portugueses que fogem do SNS. Ou seja, porque é que os hospitais privados desempenham um papel cada vez mais importante no nosso sistema de saúde, um sistema de saúde que se arrisca a tornar cada vez mais dual, porque é que vivemos cada vez mais num país onde um “SNS dos pobres”, como se escreve no livro, convive com um sector privado para onde o Estado empurra os cidadãos com mais poder de compra. Num quadro assim podemos seguir “o famoso dito de Hemingway sobre como se chega à falência: “Gradualmente e, depois, de repente”. |
Kissinger: porque ainda o escutamos neste dia em que fez 100 anos? |
|
Kissinger só ocupou cargos públicos durante oito anos – e já não os ocupa há quase meio século. Porque será então que ainda falamos dele? Não só: porque será que ainda damos importância ao que diz e escreve nesta data em que completa 100 anos de vida? |
Há algumas respostas para estas perguntas nos dois especiais que o Observador editou por ocasião deste centenário. André Abrantes Amaral escreveu sobre o europeu ambíguo, um texto muito interessante onde revisita a sua longa vida e defende esta ideia: “A maioria dos grandes estadistas define-se pelo que fizeram, pelos seus sucessos e fracassos. Kissinger, não. Kissinger define-se pela sua personalidade.” |
Já Carlos Maria Bobone olhou mais para o que foi pensando, escrevendo, polemizando o antigo secretário de Estado e, em Henry Kissinger: o pensamento movediço de um homem frio, recorda a filosofia de um homem que ajudou a mudar o mundo. |
Nesse texto ele lembra como o homem que sempre deu imensa importância aos equilíbrios de poder e olhou para o mundo mais como um (cínico) realista do que um (sonhador) idealista, nunca teve problemas em mudar de posição. Ora é exactamente sobre mais uma das suas mudanças de posição – a relativa à adesão da Ucrânia à NATO – que também se fala em Henry Kissinger Surveys the World as He Turns 100, uma importante entrevista que deu ao Wall Street Journal, uma entrevista em que volta a surpreender: |
He now believes that Ukraine—“now the best-armed country in Europe”— belongs in the North Atlantic Treaty Organization. “I’m in the ironical position that I was alone when I opposed membership, and I’m nearly alone when I advocate NATO membership.” |
Em Portugal acaba também de ser publicado o seu mais recente livro, Liderança – Seis Estudos sobre Estratégia Mundial, uma obra onde nos fala de seis líderes que marcaram o pós-guerra (Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher), e só posso dizer que vale sempre a pena ler Henry Kissinger, mesmo para discordar dele. |
E então quando é a contraofensiva? |
|
Quando olhei para esta fotografia fiquei com um nó no estômago. Raras vezes temos noção do que tem custado em vidas humanas – em vidas de soldados mas também em vidas de civis – a guerra da Ucrânia. O cemitério desta imagem nem sequer fica perto de Bakhmut, ou de Bucha – este é um dos cemitérios de Kharkiv, a cidade a que associamos um dos triunfos militares dos ucranianos, em Setembro do ano passado. |
Nessa altura a contraofensiva dos soldados de Kiev surpreendeu tudo e todos e este ano todos esperamos ser de novo surpreendidos, e de novo pela positiva. Por isso esperamos e desesperamos pelo início de uma contraofensiva grandiosa e vitoriosa, mas nem sequer sabemos se ela já começou, sendo que a incursão de uma brigada de opositores russos no oblast de Belgorod pode ser um sinal, ou mesmo uma manobra de preparação, dessa contraofensiva. |
Seja lá como for o que esta imagem nos recorda é que, mesmo sem conhecermos números exactos, a guerra tem cobrado um preço elevado em vidas de soldados, tão elevado que, apesar de vontade de lutar a Ucrânia está a ter dificuldades para recrutar soldados suficientes para os combates que se avizinham. |
Esta imagem também nos lembra, e de forma bem dramática, que, como defendem os responsáveis da The Atlantic, The War Is Not Here to Entertain You (podcast e a respectiva transcrição) – ou não estivéssemos a falar de Jeffrey Goldberg, o director da revista, e da jornalista e historiadora Anne Applebaum. Por isso, e porque ansiamos pela contraofensiva, reuni para a newsletter de hoje alguns trabalhos que penso que vale a pena conhecer: |
- Em Ukraine’s next move: can Putin be outsmarted?, texto que faz a capa da Spectator, Mark Galeotti defende que Kiev está lutar simultaneamente em duas frentes, a travar uma guerra com Moscovo e ter de manter vive uma outra campanha, esta política, no Ocidente.
- Por é bom recordar porquê e por quem a Ucrânia continua a lutar, algo que se entende melhor lendo esta reportagem do Wall Street Journal, What Ukraine’s Soldiers Say They’re Fighting For. Pequeno extracto: “No one thinks the counteroffensive will be easy. “Offense is harder than defense,” one commander tells me, “and much more costly. Many people will die.” But several men stationed behind the lines to recover from wounds and shell shock were worried that they might not be allowed to take part. Other wounded men, including Rotman, were counting the days until they could get back to the front.”
|
|
- É extraordinário que se mantenha este estado de espírito, sobretudo conhecendo o que significou combater na mais disputada cidade desta guerra, uma cidade hoje completamente arrasada (como mostra a imagem acima). Em 36 Hours in Bakhmut: One Unit’s Desperate Battle to Hold Back the Russians, outra reportagem do Wall Street Journal, conta-se o que aconteceu a uma brigada de 16 soldados recém-alistados e que perdeu 11 deles num combate que ninguém sabe se valeu a pena.
- Ora discutir se valeu mesmo a pena esse combate é o que se faz nesta análise do New York Times, Why Bakhmut? It’s a Question as Old as War. Eis uma questão importante que nela se enuncia: “But whether it be Bakhmut or Iwo Jima or Falluja, the end of the battle, no matter the stakes or victor, is always the same: unfathomable loss, and a reckoning with what comes next. How do you remember the dead, and prepare for what you fear will be the calculated indifference of your leaders, who are plotting their next campaigns, with battles that might lead to your own demise?”
- É uma questão tão ou mais relevante quanto esta semana a batalha por Bakhmut foi dada por terminada, com uma vitória de Pirro para os russos, como se defende neste outro artigo do NYTimes, What Does Russia’s Success in Bakhmut Mean for the War in Ukraine?
- Guardei para o fim o texto mais longo e porventura mais revelador, um levantamento feito pelo Telegraph daquilo que levou os russos a escolherem aquela frente de batalha e, depois, como é que, meses e meses a fio, os ucranianos a defenderam. Não deixem de ler The story of the battle for Bakhmut through the eyes of those who fought it porque é história a ser feita em cima dos acontecimentos.
|
Comer depressa faz mal? Talvez não |
|
Aparentemente partilho com Katherine J. Wu uma característica: ambos comemos muito depressa. A mim, tal como a ela, acontece-me já ter acabado o prato antes mesmo de quem se senta comigo à mesa ter chegado a meio. E eu, tal como ela, passei a vida a ouvir dizer que comer depressa fazia duplamente mal – ajudava a que aumentássemos de peso e podia induzir algumas doenças, como hipertensão ou diabetes. A ambos não têm faltado recomendações para comermos mais devagar. |
Acontece que Katherine é jornalista de ciência na The Atlantic e resolveu tirar a limpo a verdade destes “mitos urbanos” e chegou à conclusão que eles têm realmente mais de “mitos urbanos” do que de verdades científicas. Na realidade, apesar de a ideia de que comer depressa faz mal ter aparente fundamento, quando se escavaca um bocado percebe-se que a verdade é um pouco mais complicada, como ela explica em Eating Fast Is Bad for You—Right?: |
But the widespread mantra of go slower probably isn’t as definitive or universal as it at first seems. Fast eaters like me aren’t necessarily doomed to metabolic misfortune; many of us can probably safely and happily keep hoovering our meals. (…) Even among experts, “there is no consensus about the benefits of eating slow,” says Tany E. Garcidueñas-Fimbres, a nutrition researcher at Universitat Rovira i Virgili, in Spain, who has studied eating rates. |
Posso pois sentar-me à mesa com menos sentimento de culpa (mas a ter de continuar a contar calorias, isso sei que tenho de fazer). Tal como posso continuar a comer prazerosamente onde tal me satisfaz mais, que é por regra em minha casa. Por isso mesmo, e até porque muito raramente (ou mesmo quase nunca) partilho refeições no meu Instagram, deixo-vos hoje duas imagens de duas dessas refeições caseiras – a primeira da habitual ceia do último dia do ano, antes do espumante da meia-noite, onde procuramos ter sempre perdiz de escabeche, e uma refeição ao ar livre num dia mais quente, com uma sopa fria de meloa com hortelã. |
|
Tenham um bom domingo e, se possível, bom apetite. |
PS. Já agora, não se esqueçam: Foi há três anos. |
Gostou desta newsletter? Quer sugerir alguma alteração? Escreva-me para jmf@observador.pt ou siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957). |
Pode subscrever a newsletter “Macroscópio” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. |
José Manuel Fernandes, publisher do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |