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“Defender o povo, mesmo contra a vontade do próprio povo” |
Nem todos os republicanos, depois de 1911, permaneceram no Partido Republicano Português (PRP). Em Outubro desse ano, líderes muito conhecidos como António José de Almeida e Manuel Brito Camacho saíram para fundar novos partidos (o Partido Republicano Evolucionista e a União Republicana, respectivamente). Nas suas declarações e na sua imprensa, propuseram uma república diferente daquela para que o poder republicano apontara em 1911. Chamaram-lhe “uma república para todos”. Tinham visto a república ser geralmente aceite em Outubro de 1910. Agora, argumentavam que bastaria aos republicanos não provocarem, respeitarem o catolicismo e manterem a ordem pública para, sem dificuldades, conservarem o poder. Não chegava “republicanizar a nação”. Era preciso também “nacionalizar a república”, fazê-la compatível com a nação histórica e as suas tradições. |
Esta era uma política a que, no quadro da república, se chamou “conservadora”. Os que a defendiam foram designados por “direita republicana”. Em 1911, contavam com a maioria dos membros do senado e da câmara dos deputados. Por isso, foi o seu candidato, Manuel de Arriga, que o parlamento elegeu para primeiro Presidente da República. Não prevaleceram, porém. Em primeiro lugar, porque a sua “república para todos” nunca convenceu os militantes do PRP, que viram nessa ideia apenas o risco de perderem o monopólio do poder. A maioria permaneceu ao lado de Afonso Costa, que, por isso, reivindicou a marca PRP. A “direita republicana” disputou essa apropriação. |
Como os deputados fiéis a Costa formavam o “Grupo Parlamentar Democrático”, chamou-se ao seu partido “Partido Democrático”. Mas o “Partido Democrático” era de facto o PRP. Como explicou João Chagas, os líderes do PRP dividiram-se, mas os militantes não. |
Devido ao surgimento dos outros partidos, o PRP passou a ser a “esquerda” da república. Em termos internacionais, era o equivalente do Partido Radical francês. O Partido Radical, fundado em 1901 e muito ligado às lojas maçónicas, como o PRP, não propunha a redistribuição da propriedade, mas outra coisa não menos revolucionária: a reorganização da sociedade segundo “as leis da razão”, da qual uma “laicidade” intransigente era a primeira. Por essa via, o radicalismo vivia do culto da ruptura revolucionária, que o fazia opor-se a qualquer apaziguamento da opinião tradicionalista. Foi esse radicalismo que o PRP ficou a representar em Portugal. Com esta diferença: em França, o Partido Radical nunca teve o domínio que o PRP chegou a ter em Portugal. |
A partir de 1911, o PRP de Afonso Costa conduziu, desta vez contra a “direita republicana”, o mesmo tipo de agitação de rua que dirigira contra a monarquia. O espaço público ficou quase interdito à direita. António José de Almeida chegou a ser agredido na baixa de Lisboa. Sob pressão, Evolucionistas e Unionistas separaram-se. Brito Camacho convenceu-se de que poderia manipular Afonso Costa. Em 1913, com os seus votos no parlamento, ajudou-o a chegar ao governo. Costa foi hábil: para motivar os radicais, declarou “intangível” a Lei da Separação; para seduzir os conservadores, manteve-se fiel à aliança inglesa, mostrou-se implacável contra o sindicalismo anarquista (ganhou até o título de “racha sindicalistas”), e apresentou, muito antes de Salazar, um orçamento sem défice. Mesmo para a educação, foi intransigente: “o que se puder fazer sem aumento de despesa, muito bem; mas o que precisar de aumento de despesa, não, não e não!, por mais simpática que seja a instituição de que se trate”. |
A democracia como autocracia |
Em 1913, no governo, o PRP tratou de se garantir contra surpresas eleitorais. Por isso, negou o direito de voto àquela parte da população que imaginou mais próxima do clero católico: as mulheres e as populações rurais (neste caso através do subterfúgio de excluir os analfabetos). A maior parte dos portugueses ficou assim condenada à menoridade cívica. O PRP obteve um eleitorado reduzido, controlável pela máquina administrativa às ordens do partido. |
Em 1878, sob a Monarquia, 72 % dos homens adultos tinham direito de voto; em 1913, sob a República, apenas 30%. Quanto à participação eleitoral: em 1908, nas penúltimas eleições da Monarquia, 32,9% dos eleitores tinham exercido o direito de voto; em 1925, nas últimas eleições da República, essa percentagem ficou nos 14,2%. Portugal andou assim a contracorrente na Europa. Enquanto os outros Estados alargavam o direito de sufrágio a todos os homens adultos e até às mulheres, Portugal – governado pela esquerda radical – foi também o único onde se caminhou para a restrição dos direitos políticos da população, e onde a participação dos cidadãos foi cada vez menor. |
Como era isto compatível com a “democracia” que o PRP dizia promover? O partido entendia a democracia como uma forma de “autogoverno”, não de toda a população, mas só daqueles a quem os republicanos reconheciam capacidade para se governarem a si próprios. Esses eram os chamados “homens livres”. Os “homens livres” correspondiam aos adultos do sexo masculino com instrução e, esperava-se, isentos por isso de superstições religiosas. |
Quanto aos outros, os analfabetos, os pobres e as mulheres, não tinham condições para aceder ao autogoverno e representavam mesmo uma ameaça para a democracia, na medida em que pudesse ser usados ou manipulados pelos adversários do regime para minar as instituições republicanas. A democracia teria de corresponder não apenas ao autogoverno dos “homens livres”, mas ao domínio desses “homens livres” sobre a restante população. Só esse domínio asseguraria a possibilidade de os “homens livres” se governarem a si próprios, e de, através do exercício do poder, “libertarem” os seus compatriotas dos vícios e crenças ancestrais. |
Os militantes que os republicanos recrutaram nas chamadas classes populares urbanas impressionaram sempre muito os historiadores. Mas já tinham sido importantes noutros movimentos políticos do passado, do miguelismo na década de 1820 ao Partido Progressista na década de 1870. Os célebres “caixeiros” de Lisboa foram progressistas antes de serem republicanos. O regime republicano usou uma violência de que, na rua, foram agentes os seus militantes de origem popular, muito reminiscente da violência miguelista da década de 1820, mas nem por isso deixou de assentar na tradicional ascendência social e política das classes educadas, de que provinham todos os dirigentes republicanos. |
Tal como nos parlamentos da monarquia, 90% dos deputados e senadores de 1911 tinham estudos superiores, e 36% haviam frequentado a Universidade de Coimbra. A sua divergência em relação aos antigos liberais era ideológica, e não sociológica. A república não resultou da divisão social, mas da divisão política da elite social portuguesa. |
Para controlar um país de pequenas vilas e aldeias, onde vivia 80% da população, usaram a estrutura centralizada do Estado, tão criticada pelo PRP nos tempos em que tinha sido oposição à monarquia. Os líderes republicanos eram cavalheiros que procuravam vestir-se e ter opiniões segundo as modas de Paris. Olhavam a população, maioritariamente analfabeta e descalça, como a simples matéria-prima com que esperavam “fazer” um “povo”. João Chagas dissera-o: “O povo não está feito. É fazê-lo. Não é ressuscitá-lo. Ele nunca existiu. Na realidade, é dar-lhe nascimento”. Jamais lhes passou pela cabeça admitir que a matéria-prima tivesse outra vontade e o direito de a expressar livremente. Como disse Afonso Costa no congresso do PRP em 1914, “o Partido Republicano Português tem obrigação de defender o povo, mesmo contra a vontade do próprio povo”. |
Pela mesma ordem de razões, o PRP não pôs em causa o domínio dos portugueses sobre as populações nativas dos territórios africanos e asiáticos administrados por Portugal. Aí, o “homem livre” estava claramente identificado com o homem branco europeu. Para manter essa ascendência, os governos republicanos rejeitaram qualquer “política de igualdade de direitos” entre as populações e condenaram a maioria da população ao estatuto subalterno de “indígena”. Promoveram também a submissão dos chefes tradicionais, em África ou em Timor, através de operações militares que, como notou um historiador, chegaram demasiadas vezes ao “massacre tolerado ou sistemático”. |
Um exemplo disso foi a campanha militar no sul de Angola em 1915. O exército português teria, segundo vários testemunhos, avançado com ordens superiores para exterminar toda a população local, incluindo velhos, mulheres e crianças. Indignados, alguns dos oficiais e sargentos da própria expedição resolveram denunciar a selvajaria. O caso acabou por ser discutido em sessão secreta do parlamento, em 1917. A oposição atacou o governo pela sua relutância em punir os comandos militares comprometidos. A um deputado ocorreu que “civilizar com a navalha e a carabina não é humanitário nem é científico”. Afonso Costa manteve-se frio: “não nos deixemos mover por idealismos nem esqueçamos o conceito e impressão dos pretos perante respeitos humanitários que ele[s] considera[m] como fraqueza ou pusilânimidade”. |
Na última edição do programa E o Resto É História, conversei com o João Miguel Tavares sobre a ideia de tolerância e a entrada das tropas de Junot em Portugal em 1907, na primeira invasão francesa. Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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