Seja feita antes uma declaração de intenções: sou um grande fã de Jordan Peterson e adiro à febre em volta dele. É uma lufada de ar fresco no pensamento do século XXI, além de um génio argumentativo e comunicativo. Aconselho vivamente quem ainda não leu “12 regras para a vida”, o seu bestseller, a rapidamente comprá-lo e oferecê-lo pelo Natal.
No tema do casamento, fiquei um pouco intrigado com as suas afirmações ao Observador, “Temos esta ideia estranha no Ocidente, que é muito imatura, de que o casamento é fundamentalmente sobre a felicidade do casal. Não, não é. É sobre a estabilidade da estrutura familiar para as crianças. Isso é o fundamental”. Sei que não serei a melhor pessoa para falar de filhos pois, apesar de casado, involuntariamente não os tenho, mas uma vida a dois manter-se inevitavelmente infeliz só por causa de crianças, será viável? Sei também que Jordan Peterson enfrentou problemas de saúde complicados com os filhos e, por isso, tenho de respeitar e solidarizar-me profundamente com todos os dramas individuais de cada casal (pois também os tenho), mas uma coisa é respeitar, outra procurarmos sempre melhores formas de conseguir essa felicidade apesar de contrariedades, a qual vejo em tantos casais que conheço. É possível. É fácil? Não, mas quem disse que era? Penso que esta forma pessimista de ver o casamento é uma tendência frequente em alguns conservadores e uma visão algo “protestante” da vida, a meu ver, como já escrevi neste artigo, a propósito de Henrique Raposo.
Tentarei entrar a na forma de pensar de Peterson e outros conservadores: o casamento é uma forma que a natureza (Deus, para os crentes) encontrou para existir um enquadramento favorável à procriação entre dois seres imperfeitos que terão de se aturar a vida toda e depois da morte, sim, “serão como anjos” e libertar-se-ão. Pode ser excelente, mas também horrível sermos diferentes, portanto. Se não fosse suficiente, temos de nos cingir a um só cônjuge, a enfrentar dores e a “fragilidade do Ser”, como diz Peterson, ou seja, a doença, o falhanço, a estupidez, o mal, o desemprego, o sofrimento, etc. Mas estes conservadores esquecem-se de outras partes. “Juntar-vos-eis e sereis um só”. Isto é o objetivo de qualquer casamento, o estádio maior, mas porque temos de andar sempre nos extremos, ou a infantilidade ou o desencanto? Será possível uma visão equilibrada? Poderemos ansiar por esta fusão perfeita do que é diferente, do Yin e Yang? Penso que é possível e basta observar os casais que o conseguem mais do que outros.
Peterson é honesto e quebra o politicamente correto e as mentiras da contemporaneidade, mas, a meu ver, há um perigo de cair no ressentimento que precisamente advoga de que devemos fugir, sendo responsáveis. Este é um dos seus grandes claims: “Levante a cabeça e endireite as costas” (capítulo 1 de “12 Regras para a vida”). Não sejas contra o mundo, mas tu o primeiro responsável, senão cairás no ressentimento, inveja e raiva. Isto é uma grande frase e valor. Depois, com um semblante contrafeito, afirma que se formos felizes cuidando das crianças, “good for you”. Esta será a resposta ao divórcio e às consequências piores da revolução sexual dos anos 70, como ele provavelmente gostaria? O dever? Sendo o primeiro estádio, com certeza necessário, chegará? Com certeza que o casamento é difícil e uma das maiores aventuras existenciais, com tudo o que comporta uma vida a dois e em família, mas pode-se concluir disto que é impossível ser feliz em casal? Por algo ser difícil quer dizer que não sou feliz vivendo-o? Ou poderemos tomá-lo como desafio e virá-lo a nosso favor?
Explica mais: “Ok, vocês vão-se casar. Eis aquilo que vão ter de negociar: quem vai fazer o jantar? Quem vai às compras? Como vai ser o sexo? Quem vai limpar a casa?”.
De seguida, “destruímos as regras dos sexos. Não gostamos de ver as pessoas em comportamentos tipificados por sexos como há 50 anos”. Mais uma vez contrariado, afirma que aceita, “Fine! But we didn’t replace it by negotiations”. Como resposta a colmatar o preconceito geral e as diferenças de sexos, a negociação. “Todas estas coisas têm de ser negociadas e as pessoas não estão treinadas para a negociação que é crucial para que as famílias não andem sempre com a mão na garganta umas das outras”. Aceito e concordo inteiramente que a negociação e outras soft skills como a criatividade, a comunicação, o trabalho de equipa, o pensamento crítico, são as ferramentas comportamentais do futuro e também se podem aplicar ao casamento, mas parece uma decisão demasiado tática e calculista de Peterson neste contexto. A questão é que não estamos numa relação comercial ou diplomática em que os intervenientes poderão ter visões antagónicas, mas como preferem a concórdia à rutura, cada um terá de abrir mão de algo para existir uma confluência. Certo. É inteligente, à diferença de sexos, juntam-se outras, como personalidade, etc., mas será esta uma visão suficiente para o casamento? Este não é uma vivência de duas pessoas numa casa, que partilham contas (como até advoga também nesta entrevista, com benefícios fiscais) e são cuidadores de crianças. Nessa lógica, substituíamos os cônjuges por irmãos ou cuidadores de crianças.
Conservadores, católicos, evangélicos, é isto que queremos passar ao mundo? Sê responsável, combativo, levar as pessoas a resolverem os seus problemas através do dever? Correto, é legítimo, pois a biologia interessa. Não podemos reverter a ordem natural das coisas, mas “carregar o fardo do mundo” será tarefa só de cada um individualmente? Mais: ao dizermos que a relação do casal não é para ser feliz, não só estamos a mentir, mas também não estamos a motivar ninguém a casar. Precisamos de uma visão para a nossa vida, não pode ser a observância de regras. Será o amor? Mas o que é isso? Eis o Santo Graal.
Contudo, não opinarei mais sobre a afirmação de Peterson, mas deixo doze perguntas ao mesmo. Caso ele responda ou não, espero que possam ser objeto de reflexão para todos, pois o são para mim:
- O que quer dizer com “estabilidade”? Financeira? Afetiva?
- O que quer dizer com “felicidade dos esposos”? Não terem tempo para si pois têm de se ocupar das crianças?
- Pode explicar como é que sem felicidade é possível estabilidade?
- Em que medida pode o casal negociar as funções e tarefas com base nos talentos (quem mais gosta/ sabe cozinhar, varrer, buscar miúdos, etc.) e não apenas funcionalmente (um fica com uma coisa, outro com outra)?
- Como pode uma relação infeliz entre esposos ser notada pelos filhos?
- Se sim, que influência pode ter uma relação infeliz nos filhos?
- Em que medida se pode dar amor a um filho se não amamos o nosso cônjuge?
- A forma como os esposos se amam é imitada pelos filhos?
- Haverá algo de especial e único na relação homem-mulher que é essencial para a criação e educação da criança?
- Como viver a vida de casal depois dos filhos saírem de casa?
- Em que medida o papel do casal em comunidade é importante para a sua fecundidade e para o fortalecimento da sua relação?
- No caso de casais inférteis ou já com idade avançada, estão condenados a ser infelizes?
Co-fundador do site datescatolicos.org, gestor