Estávamos a 11 de Setembro de 2001. Em Lisboa, do alto da inocência que os 12 anos naturalmente acarretam, brincava eu com uma amiga no alpendre, enquanto as notícias que passavam na televisão criavam ruído de fundo. Uma tarde de terça-feira aparentemente normal, com a calma do fim do Verão a assentar. Uma tranquilidade violentamente interrompida pelos sons de choque e horror que vinham da sala. No ecrã, imagens aparentemente tiradas de um qualquer filme de acção dos anos 90. Uma torre alta, numa terra distante, esburacada e em chamas. Embora não me tenha imediatamente apercebido, assistiria, minutos mais tarde e em directo, ao embate contra a Torre Sul do World Trade Center. Pela reacção dos adultos presentes, lembro-me de tomar finalmente consciência de que o que estávamos a ver era real.

Pode até parecer ridículo, mas recordo aquele dia de uma forma mais lúcida do que muitos outros eventos teoricamente mais importantes nos meus anos de formação. Até porque só viria a perceber, anos mais tarde, o verdadeiro impacto que aquela fatídica manhã para o mundo teria no meu percurso de vida. Afinal, e 20 depois – com a maior parte da minha vida académica e profissional dedicada ao estudo do fenómeno do terrorismo e da política internacional na sua vertente securitária –, é aquele mesmo evento que me leva hoje a escrever esta reflexão.

O dia que hoje marca 20 anos do atentado mais inesperado e impressionante deste século representa também um desencadear de eventos que, embora não exista necessária causalidade, acabam por ter um eixo de correlação com esta data. Muitos artigos e ensaios serão escritos neste aniversário, sob várias perspectivas e ângulos de análise, inevitáveis pela actualidade que a data ainda representa. Os aniversários deste cariz servem para isso mesmo, revisitar os factos, reavaliar perspectivas, relembrar lições. Principalmente aquelas que ainda não foram aprendidas.

O dia que mudou o mundo

A 6 de Agosto de 2001, meros 36 dias antes dos ataques, George W. Bush recebia no seu briefing de segurança diário um documento intitulado “Bin Ladin Determined to Strike in US”. Os recentes atentados no Quénia, Tanzânia, Iémen ou mesmo os atentados de 1993 no World Trade Center, juntamente com a capacidade de financiamento já conhecida de Bin Laden, colocavam a Al-Qaeda na zona de alerta vermelho para os serviços de inteligência americanos. O seu líder não se deixava intimidar por percalços e preparava os seus ataques com anos de antecedência. Os indícios eram evidentes e quem estava ciente do que estava prestes a acontecer seria largamente ignorado.

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A leitura política daquele documento desprezou a questão do terrorismo no geral, e a Al-Qaeda de Bin Laden em particular, algo que só se tornaria público em 2004, no âmbito da comissão de investigação às circunstâncias que rodearam o 11 de Setembro, incluindo a prontidão e resposta imediata aos ataques. Uma desvalorização da ameaça materializada num espectáculo de horror, estrategicamente genial e de uma sofisticação que a mais alta estrutura do poder político americano jamais considerou ser possível, por parte de um grupo que se organizava nas grutas de Tora Bora, no Leste do Afeganistão.

O aparelho de segurança mais forte do mundo falhou. O orgulho americano foi atingido da maneira mais violenta, expondo publicamente as fragilidades de um sistema hegemónico e aparentemente avançado mas que, na verdade, operava ainda largamente sob os pressupostos obsoletos de uma Guerra Fria já há muito terminada. O que daí adveio só pode ser descrito como uma campanha obsessiva pela recolha de informação, independente da legalidade ou legitimidade dos meios para a obter. Aquilo que o governo esteve disposto a fazer em nome da segurança nacional viria a prejudicar para sempre a imagem americana e das democracias ocidentais no geral, tanto a nível doméstico como internacional. Um rol de decisões que violaram direitos humanos e garantias fundamentais, que ainda hoje produzem efeitos nefastos na relação dos cidadãos com os seus governos e que em nada contribuíram para o combate aos movimentos extremistas.

Diz-se então que foi neste dia que o séc. XXI começou, e com razão. Ver o World Trade Center a ser atingido por dois aviões e depois cair em ruínas irá trazer-nos sempre à memória a sensação bizarra e desadequada à realidade ocidental do que será viver num país violento, envolto em destruição e perdas de vida em massa, imagem que tipicamente reservamos para os ditos “países do terceiro mundo”. O dia em que o mundo percebeu, mesmo que de forma ténue na altura, que nada mais seria como dantes. Talvez nem o próprio trio cerebral e financeiro – Khalid Sheik Mohammed, Ayman al-Zawahiri e Osama Bin Laden – por detrás da “Operação Aviões”, como foi simploriamente chamada entre as fileiras da Al-Qaeda, alguma vez imaginou o impacto que as suas acções viriam a ter na mudança do curso da História.

Uma missão sem exemplo

Assistimos nos últimos anos a uma mudança de paradigma do terrorismo – que passou a ser comummente mas erróneamente associado ao Islão –, mas também da política identitária no Médio Oriente. O martírio, ou a morte como resultado de um acto externo à vontade do indivíduo que defende uma causa maior, foi substituído por uma reinterpretação do suicídio, acto expressamente proibido pela religião muçulmana, numa narrativa distorcida, em que a morte auto-inflingida em nome da jihad garante o mesmo acesso à vida após a morte. Esta politização de uma crença foi possivelmente a maior arma que grupos como a Al-Qaeda tiveram para atingir os resultados que desejavam. Não deixa de ser importante, ainda assim, distinguir que é o terrorismo que é considerado islamista pela visão radical da religião e não a religião que está directamente associada ao terrorismo.

Mas esta mudança de paradigma foi muito mais abrangente, principalmente para a sociedade americana. George W. Bush, de braço dado com Dick Cheney e Donald Rumsfeld, conduziu uma presidência de políticas de medo com justificações legais, no mínimo, frágeis. Esta doutrina de disposição neoconservadora e assente na premissa “nós contra eles” veio subverter, por completo e em várias fases, os conceitos de legalidade e de dignidade humana. A Guerra ao Terror foi rapidamente normalizada e institucionalizada, não só através do lugar de centro que passou a ocupar na política externa norte-americana, como também pela reorientação da estrutura de segurança nacional e enraizamento na cultura americana das ideias e do pressuposto sobre a ameaça terrorista.

Instalou-se a percepção de que os Estados Unidos tinham direito a impor mudanças de regime pela força e de instrumentalizar a democracia como a bandeira para as suas acções de política externa. Tratou-se de um exercício de abuso de poder flagrante, começando pela “Authorization for the Use Of Military Force”, resolução conjunta do congresso aprovada a 18 de Setembro de 2001, e culminando numa série de ordens executivas criadas para permitir a impunidade perante o Direito Internacional e doméstico, como no caso do “Patriot Act”. Documentos redigidos numa linguagem largamente propícia a interpretação e lacunas, desenhados para permitir práticas como tortura – sob o eufemismo de enhanced interrogation techniques –, detenções ilegais em locais secretos da CIA, extradições não judiciais, o aproveitamento de Guantanamo pelo vácuo legal tão conveniente ou até a operação de vigilância em massa da NSA sobre os próprios cidadãos americanos, sem qualquer supervisão.

Este conceito de soft power, ou a capacidade de poder pela atracção, foi a grande marca diferenciadora da democracia mais jovem do mundo e o elemento cuja exportação implantou globalmente os ideais dos valores americanos e do capitalismo no pré-11 de Setembro. A ser verdade que este poder ainda se mantém, principalmente a nível cultural, as acções na política de contraterrorismo prejudicaram no longo prazo a retórica missionária do destino manifesto americano. Esta auto-percepção de excepcionalidade, que tem vindo a permitir comportamentos altamente questionáveis, foi também escravizando e subjugando o direito internacional às batidas do tambor da Guerra ao Terror. A Doutrina Bush veio institucionalizar a promoção da democracia pelo uso da força, em defesa da segurança e dos interesses americanos, através de um mecanismo político assente na missão e não no exemplo. Um legado que nem Obama dispensou, ao contrário do que seria de esperar, pelo tom menos bélico com que fez a sua campanha, assente nas promessas de retirada dos conflitos e de correcção dos erros do passado. A mesma linha de actuação foi perpetuada, trocando as tropas pelos drones para assassinatos direccionados, outro território legal muito cinzento e que ainda hoje ocupa um lugar de destaque no debate internacional.

Mesmo a própria nomenclatura desta Guerra ao Terror não foi deixada ao acaso. O dito terror podia estar à espreita noutros locais fora do Afeganistão, abrindo caminho à tão controversa invasão do Iraque em 2003 sob pretextos mal fundamentados, numa verdadeira cruzada pessoal de Cheney, há muito inconformado com a decisão do fim da Guerra do Golfo. Rapidamente, aquela que deveria ser uma guerra cirúrgica ao terrorismo que tinha atacado a América ganhou contornos mais latos e um foco muito difícil de justificar, principalmente para o público interno americano, que via os seus familiares a morrer por uma causa cada vez mais indefinida. Talvez a consequência mais gravosa deste erro no Iraque tenha sido o surgimento do auto-proclamado Estado Islâmico – composto na sua maioria por dissidentes da Al-Qaeda, ocupada a tentar reagrupar-se após a invasão aliada no Afeganistão –, possibilitado pelo vácuo de poder deixado pela saída americana em 2011 e que acabou por dar origem ao conflito e desastre humanitário na Síria.

Nas invasões do Afeganistão e do Iraque, os erros foram sucessivos e as perdas demasiado significativas. As aprendizagens que dali poderiam e deveriam ter saído foram quase nulas. Os objectivos da missão já tinham sido teoricamente atingidos em 2011, com a eliminação de Osama bin Laden, no Paquistão. Mas o novo conceito de contra-insurgência, desenhado pelo General David Petraeus, na “batalha pelos corações e mentes” daqueles povos invadidos, estaria longe de ser deixado para trás. Foram precisos mais 10 anos para a saída oficial da presença norte-americana e aliada do Afeganistão, num atabalhoado e desastrado exercício de que o mundo foi testemunha. Vinte anos depois, o legado que temos da influência ocidental naquela região é o de uma missão vazia de exemplos positivos, sem nada para mostrar sobre os valores que apregoamos como certos e de um desperdício brutal de investimento militar, num lugar onde a democracia não terá agora grande espaço para se desenvolver.

E 20 anos depois? 

Enquanto pensava sobre o que queria expressar, mais até do que analisar, sobre esta data no actual quadro global – recomendo desde já a exímia série documental Turning Point: 9/11 and the War on Terror –, o que mais se evidencia ao fim de 20 anos são os tempos profundamente divididos que vivemos e a incurável fragilidade da democracia e liberdade face ao medo. É com pesar que se pode constatar que o sentimento de união e de solidariedade que vivemos nos meses seguintes aos atentados foi tendo uma morte lenta.

O terrorismo islâmico permanece uma ameaça, com um alcance geográfico exponencialmente mais extenso. Os talibãs estão de volta ao poder no Afeganistão, economicamente apoiados pela China, que se regozija pela oportunidade concedida pela saída americana para pôr em prática as suas prioridades estratégicas a nível económico e de influência na região. Escusado será dizer que esta aliança terá implicações geopolíticas complicadas para a administração Biden, cuja nova direcção de política externa está principalmente focada na questão do combate às pretensões hegemónicas chinesas.

Ao mesmo tempo, movimentos extremistas da direita radical nos Estados Unidos e na Europa estão a crescer a passos largos e a engajar o seu próprio terrorismo. A crescente retórica intolerante e xenófoba não surgiu em 2016, quando Donald Trump venceu as eleições. Este discurso está enraizado no pós-11 de Setembro, quando a população norte-americana se virou contra as comunidades muçulmanas emigrantes, alimentada pela febre da Guerra ao Terror no caos de uma nação de luto. Donald Trump apenas veio amplificar e normalizar algo que já existia e que acabou por alastrar à Europa.

A confiança nos governos e nas instituições está profundamente fragilizada, quase por um fio, refém que está da máquina mediática das fast news, dos fenómenos de corrupção institucionalizada e da bolha das redes sociais, abrindo alas livres a populismos perigosos.

Ainda estamos a recuperar da última grande crise financeira, testemunhamos avanços monstruosos na tecnologia e inteligência artificial, ao mesmo tempo que vemos nascer novos grupos terroristas, com novas técnicas de recrutamento e de actuação e outras ameaças bastante mais sérias, como é o caso da crise climática em agravamento galopante. No último ano e meio, vivemos uma pandemia que talvez tenha sido aquilo que mais uniu a Humanidade desde os eventos em Manhattan.

O 11 de Setembro alterou profundamente a maneira como, enquanto sociedade, vemos o outro, aquele que é diferente de nós. Permitimos que os actos perversos de alguns envenenassem a nossa percepção e conduta sobre o todo. Concebemos políticas ditas de integração que apenas promovem ainda mais a segregação e, por conseguinte, radicalizam muitos muçulmanos europeus de segunda e terceira gerações, como os responsáveis pelos recentes ataques no Bataclan, em Paris (2015), no aeroporto e no metro de Bruxelas (2016) e tantos outros actos de violência contra o modo de vida ocidental. Uma das inúmeras lições que teimamos em não aprender ou aceitar é que quando matamos um terrorista, outros dez nascem para tomar o seu lugar. Outra será a célebre frase “a man’s terrorist is another man’s freedom fighter”, à falta de tradução adequada, que tão bem traduz a importância da perspectiva na definição das acções do outro. Agimos com a mesma displicência em relação àquelas realidades políticas, culturais e religiosas que o Executivo e o estabelecimento militar americano insiste em manter e que continuamos sem conseguir – ou querer? – compreender.

Caímos também na esparrela do discurso do medo, facilmente condenando uma religião inteira à infâmia. A discriminação e o famoso – e tão negado – racial profiling da população muçulmana são hoje uma realidade incontestável e profundamente triste. A questão das migrações levantada pela crise na Síria, em 2016, veio trazer ao de cima discursos verdadeiramente hitlerianos da boca dos mesmos que assumiram de livre vontade a responsabilidade política e, acima de tudo, humana em acolher e proteger aqueles a quem a paz é negada pelo seu próprio país de origem. Optámos por uma conduta de arrogância, mesmo quando já se tornou claro que é pela educação para a tolerância e pelo incentivo ao multiculturalismo que podemos dar verdadeiro sentido aos objetivos da paz pela diplomacia, da aceitação da diferença pela cooperação, da convivência saudável pela humanidade.

Consequentemente, vivemos também em sociedades crescentemente militarizadas e securitárias, onde a vigilância extrema e o controlo sob grande parte de toda a nossa informação está lentamente a erodir os direitos fundamentais à liberdade e à privacidade. E porquê? Seria, afinal, de esperar que escândalos como o programa de vigilância em massa da NSA ou o mais recente exemplo da Cambridge Analytica nos tornassem mais contestatários em relação a estes abusos. A resposta é simples: tal como se normalizou que teríamos uma guerra perpétua contra o terror, o mesmo aconteceu quanto à cedência de informação e de liberdades ao abrigo da dicotomia privacidade vs. segurança. Esta escolha que teríamos que fazer, tão debatida na opinião pública em meados da década passada, evoluiu para a permanente e falsa percepção de que estamos seguros e que, por isso, aquilo de que estamos a abdicar é justificável.

Enquanto as nossas políticas, objetivos e interesses foram mudando nos últimos 20 anos, abandonando o primado da defesa dos valores basilares das sociedades ocidentais que ameaça gravemente a reputação da democracia, a solidez do Estado de Direito e as nossas próprias liberdades individuais, a missão e crença dos talibãs, Al-Qaeda, auto-proclamado Estado Islâmico e tantos outros grupos permanecem intactas. Mais fortes até do que há duas décadas. Bastaram 19 homens, quatro aviões, duas torres, o Pentágono e um descampado – famoso pela coragem dos que, a bordo do voo United 93, desafiaram o terror a troco das suas próprias vidas – para redefinir, em curtas horas, a maneira como nos organizamos em sociedade e como exercemos a nossa consciência global.

Vinte anos depois continuamos a trilhar o caminho começado em 2001, com sérios desafios pela frente. Somos hoje, talvez, uma sociedade mais preocupada, apesar de pouco consequente, com a transparência e a responsabilidade de quem nos governa, é certo. Somos, simultaneamente, mais ignorantes pela recusa em aprender as humildes lições humanas do dia que mudou o mundo.