A 29 de Fevereiro de 2020, a administração Trump anunciava com grande pompa e circunstância a assinatura de um acordo de paz com os talibã, pondo fim ao conflito de quase duas décadas no Afeganistão. Neste tão aclamado “acordo histórico” — que a bem da verdade, estava na calha há anos — a saída americana ficaria marcada para 1 de Maio de 2021, a troco da redução da violência (contra os Americanos e forças aliadas) e da prevenção do ressurgimento da Al-Qaeda no país. 

Vemos agora as reais implicações deste acordo, ainda nem chegada a data oficial de retirada das tropas americanas do terreno, adiada para 31 de Agosto (casualmente, ou não, dias antes do 20° aniversário dos ataques de 11 de Setembro). Bastou apenas uma semana para que o Presidente Ghani abandonasse o país, a liderança talibã ocupasse o palácio presidencial sem grande resistência, e o modus operandi bárbaro de revenge killings e decapitações voltasse a ser posto em prática. A base aérea de Bagram viu serem libertados da prisão mais de cinco mil detidos, entre eles combatentes talibã e terroristas do adormecido Estado Islâmico.

Choram-se, e bem, os direitos das mulheres afegãs, que agora serão totalmente anulados. Nas regiões capturadas, a Sharia já é lei, o que significa que as mulheres estão agora proibidas de ir à escola, trabalhar ou sequer sair de casa sem autorização dos comandantes locais. Mais ainda, sendo as mulheres solteiras ou viúvas consideradas “despojos de guerra”, os talibã deram ordens aos imãs locais para que listassem as mulheres entre os 12 e os 45 anos a fim de as casar forçosamente com jihadistas, num esquema de escravatura sexual grotesco. Atrocidades inimagináveis até para uma geração de mulheres afegãs que cresceu sem nunca ter experienciado a repressão islamista que agora se instala. Biden pode prometer continuar a lutar pelos direitos básicos das mulheres e raparigas afegãs após a saída das forças americanas, mas tal dificilmente mudará a dura realidade a que foram abandonadas e de que não conseguirão escapar. A parca liberdade individual recuperada por estas mulheres volta à estaca zero. No fundo, um retrocesso dantesco.

É preciso que se esclareça o seguinte: tudo aquilo que se veio a desenrolar nos últimos dias em Cabul não deve ser visto, a meu ver, como uma surpresa. Existem precedentes claros; a retirada do Iraque, em 2011, ou mesmo de Saigão, em 1975. Acreditar que esta administração não estava ciente de que a ofensiva talibã sobre a capital seria praticamente imediata (ao invés dos três meses comunicados pelos serviços de inteligência americanos) e que as condições para uma retirada segura e organizada de todos os aliados afegãos estavam garantidas, é escolher aceitar areia nos olhos. Esta decisão é a Realpolitik americana no seu habitat natural.

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Há simplesmente uma impossibilidade prática de que um país com tamanho investimento em defesa e serviços deinformação, activo no terreno há 20 anos, e que conhece todas as nuances da natureza ofensiva sazonal dos talibã (sendo a Primavera e Verão as alturas mais quentes ofensivamente), não tivesse previsto todo o caos e pânico que agora vemos, com choque, nos telejornais. Parece pouco astuto por parte da administração Biden esta passagem bacoca de atestados de estupidez à população a poucos meses das eleições intercalares em casa. É certo que a política externa raramente pesa nas urnas americanas, porém, os presidentes americanos vivem da reputação, do quão vencedores conseguem ser nas diversas áreas, tanto em casa como para os seus aliados pelo mundo fora. A imagem que esta decisão passa até pode ser abonatória para o eleitorado democrata, mas é inevitavelmente nefasta para a credibilidade internacional desta liderança. Em alternativa, Biden poderá estar, ao assumir inteiramente a responsabilidade desta decisão, a retirar o peso da questão ao seu sucessor (ou sucessora, dado que Kamala Harris parece estar lentamente a posicionar-se para a corrida presidencial algures no futuro), indicando assim que não pretende um segundo mandato.

Em bom rigor, Biden foi sempre claro quanto à sua posição neste tema, ainda enquanto vice-presidente de Obama; a presença americana teria que ser incrementalmente diminuída, não descuidando o apoio a missões de contra-terrorismo, o principal motivo que os levou à região. Tal como enfatizou na conferência de imprensa (tardia) de 16 de Agosto: “Our mission was never supposed to be nation building”, posição directamente contrária à de George W. Bush, presidente à época da invasão em 2001, que descreve nas suas memórias publicadas em 2010: “Afghanistan was the ultimate nation building mission… and we had a moral obligation to leave behind something better.”

Nesta mesma conferência, o discurso de Biden pareceu ser mais direccionado ao público interno, preocupado com a economia e a crise pandémica, cansado dos custos financeiros e humanos numa guerra já há muito perdida. Mais ainda, deu o tom a uma presidência que será mais isolacionista — ainda assim, atlanticista — na sua política externa, quebrando com a corrente intervencionista dos últimos anos.

A ser verdade que o presidente herdou um acordo miserável do seu antecessor que teria sempre que cumprir, não lhe faltavam opções mais judiciosas para o planeamento e execução da retirada. O prazo de 1 de Maio há muito que havia sido ultrapassado de qualquer maneira. Alguns meses teriam feito toda a diferença para que se preparasse a estrutura do governo para o vácuo de poder, para auxiliar no planeamento da estratégia militar afegã para a próxima onda ofensiva dos talibã, e para permitir mais actuação diplomática ao nível regional. 

 Este atraso na retirada teria, obviamente, os seus custos: o envio de mais tropas americanas para o terreno, arriscando mais baixas no conflito, mas a nível de orçamento teria sido totalmente suportável. Ao invés, e como podemos constatar, Biden optou por uma saída apressada à la americana, no pico da ofensiva talibã. Sem planeamento, deixando as forças militares afegãs que combatiam a guerra civil no terreno sem apoio logístico e aéreo, e sem garantias de vistos ou de saída segura para todas as famílias afegãs que agora desesperadamente se agarram às rodas de aviões, sabendo o que os espera se não conseguirem escapar. 

 Após quase 20 anos de um conflito que custou mais de 170 mil vidas e cerca de dois biliões de dólares, vemos mais uma experiência ocidental falhar por completo naquela região. Foram quase 20 anos de políticas falhadas, de incapacidade em compreender a cultura e a política afegã, de dificuldades na abordagem à contra-insurgência e de sucessivas leituras geopolíticas erradas que terminam numa retirada apressada e sem estratégia. E porquê? Simplesmente, deixou de servir o interesse nacional. Esta é a grande falácia do “Destino Manifesto” americano. Todo o discurso missionário dos valores da democracia e liberdade cai por terra assim que deixa de servir o interesse nacional. A visão americana de construção de um Afeganistão mais estável e pacífico era, afinal, ilusória. O abandono foi imediato, independentemente das consequências. E o que está para vir é, no mínimo, desastroso.

Os Estados Unidos são uma nação militarizada, cuja economia revolve pesadamente em torno da indústria da defesa e armamento e cuja hegemonia e influência depende da perpetuação de conflitos. Isto é facto. Tudo o resto são narrativas saudosistas da glória pós-Guerra Fria, sob o já cansado pretexto missionário e altruísta de salvação dos povos oprimidos. Esta retirada, embora necessária, nesta altura e nestas condições, é um erro crasso. O problema não está no conteúdo, mas na forma. Os americanos deixam agora o Afeganistão, derrotados na sua guerra mais longa e numa óptica de traição ao povo afegão. 

É nestas alturas da História que o lado político perde o protagonismo. Uma decisão deste cariz nunca pode ser verdadeiramente boa, independentemente de que lado da barricada venha, quando carece de um plano claro e robusto que cubra todos os prismas e que assegure uma acção coerente e a segurança de todos os que deram anos da sua vida ao serviço da promessa de um país melhor. 

Mais um episódio infame na política externa americana, sobre os ombros de um presidente que, embora não responsável pelos meios que levaram a esta situação, será certamente culpado pelas suas escolhas para o triste fım alcançado. Resta-nos aguardar pelo inevitável ressurgimento do extremismo e do ódio pelo Ocidente, e uma conta muito mais alta a pagar, principalmente por todos os que são deixados para trás e para quem a paz é agora um sonho ainda mais inatingível do que há 20 anos.