A alteração ao regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial (RJIGT), aprovada recentemente pelo Governo e referida na imprensa como “alteração à lei dos solos”, procura atuar sobre um dos nossos problemas mais prementes, a escassez de habitação acessível. Articulado com o programa Construir Portugal, trata-se de um regime excecional que, no essencial, permite a alteração simplificada dos planos diretores municipais (PDM) para reclassificar áreas de solo rústico, afetando-o à construção para fins habitacionais. Também limita os preços máximos dos fogos a criar, introduzindo o conceito de “habitação de valor moderado”, com base nas medianas de preço a nível nacional e local.

Voltamos, assim, a promover o alastramento das manchas urbanas, pseudossolução pouco imaginativa, na base da insustentabilidade do nosso modelo territorial. Sem surpresa, vários autarcas manifestaram-se já a favor desta orientação, em linha com o que muitos viam como resposta para a alegada escassez de solo para construir. Curiosamente, também a Ordem dos Arquitetos veio apoiar a medida. Mais realistas, os promotores imobiliários expressam reservas sobre a sua eficácia, se não for acompanhada de alterações substantivas à fiscalidade que incide na construção.

Creio tratar-se de um mau caminho, que, embora possa lançar no mercado alguma oferta adicional de habitação, o faz de forma errada, com elevados custos para a sociedade e em detrimento de melhores soluções. Creio, ainda, que não irá ter um impacto significativo nos preços da habitação – um dos seus objetivos essenciais – e que trará prejuízos em termos da gestão do território e da qualidade de vida urbana.

Os apoios à intenção do Governo refletem algo que é muito nosso: perante a incapacidade de atuar nas complexidades da cidade existente, criamos regimes excecionais, para começar de novo noutras localizações afastadas de tudo isso. Promover o preenchimento dos (muitos) espaços urbanos vazios, mobilizar o (muito) património público, agilizar soluções para os imbróglios – jurídicos, fiscais e outros – que condicionam os (muitos) edifícios devolutos nas áreas urbanas centrais, é do domínio das soluções impossíveis, de que já aqui falei.

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Examinemos os dois aspetos centrais da medida, a reclassificação do solo rústico para construção habitacional e a fixação de preços máximos para a comercialização dos fogos criados.

A ocupação urbana do solo rústico deveria ser a última das opções, atendendo às consequências nefastas que tem a vários níveis. Para além dos efeitos nos modos de vida e na economia das comunidades locais, relevam os impactos sobre o ambiente e a paisagem, sendo que o solo rural é um recurso que desempenha funções importantes nos ciclos naturais. Note-se que é por causa da ocupação informal do solo rústico nas periferias urbanas que muitos desastres naturais ocorrem ou se agravam.

Numa perspetiva económica, que deve sempre informar as políticas públicas, destacam-se as ineficiências e os custos do investimento público na infraestruturação da mancha fragmentada que resulta desta dispersão urbana. E mais ainda, este modelo gera dormitórios que continuam a depender das principais centralidades em termos de emprego e de acesso a funções centrais, agravando a duração e o número das migrações pendulares, com os efeitos conhecidos que referi aqui.

Como justificar a mobilização de solo rústico para suprir a hipotética escassez de oferta, se a definição dos perímetros urbanos nos PDM foi largamente por excesso, muito acima das necessidades do crescimento populacional? O debate na revisão da primeira geração de PDM, no início deste século, era como reduzir os perímetros urbanos definidos naqueles planos, e como compatibilizar isso com as expectativas de valorização do solo assim criadas nos proprietários.

Assim, não faria mais sentido começar por concentrar esforços na criação de mecanismos que promovessem o preenchimento dos vazios urbanos, em grande parte na esfera do Estado? E ainda, e sem consumo adicional de solo, apostar na reabilitação para fins habitacionais dos muitos edifícios existentes subutilizados, mais uma vez, sobretudo públicos? Isto permitiria lançar no mercado um número considerável de fogos, ainda para mais promovendo a valorização, a eficiência e a sustentabilidade urbanas.

Quando na academia se teoriza sobre os méritos da cidade compacta, e a “cidade dos 15 minutos” é tida como uma ideia de futuro, porquê apostar ainda mais na dispersão urbana? É a otimização da ocupação e da organização do espaço urbano que promove a complementaridade funcional, a diversidade social e a formação de massa crítica essenciais ao desenvolvimento e à qualidade de vida nas cidades.

O outro aspeto central desta alteração ao RJIGT é limitação de preços máximos para a comercialização dos fogos criados por via da reclassificação do solo rústico. Aqui, creio estarmos perante um equívoco.

A hipotética escassez de solo para construção como causa para o preço da habitação é uma meia verdade, que merece melhor análise. Por um lado, o preço do solo é apenas uma componente, nem sequer a principal, na formação do preço final da construção. Por outro, o preço dos terrenos reflete a dificuldade em mobilizar solo urbano existente e apto, mas indisponível por múltiplas razões. Aqui, os terrenos públicos, ou de algum modo condicionados pelo Estado, representam uma parte substancial.

Na base desta alteração legislativa está o pressuposto que, mantendo-se constantes as outras componentes, a habitação ficaria mais barata por via do custo mais baixo dos terrenos rústicos, agora reclassificados como urbanos. Ou seja, a poupança no terreno, só por si, criaria a margem suficiente para a redução do preço final da habitação. Mas, na verdade, na estrutura de custos da construção avultam os impostos e os custos administrativos e de licenciamento, os que mais pesam e onde seria possível uma redução significativa pelo Estado. Também os custos de financiamento e os custos de construção (materiais e mão de obra) – estes menos passíveis de controle público – pesam fortemente no preço final. Nada disto parece ter sido considerado neste diploma.

E não descuremos o efeito da oportunidade assim criada para a especulação sobre o solo rústico, na linha da que já alimentou o anterior alastramento das periferias, que em pouco tempo pressionará em alta o seu preço. Bem como as regras de urbanização, com os necessários custos de infraestruturação e cedências para equipamentos e espaços verdes, que irão onerar as operações.

Uma nota final sobre o conceito de “habitação de valor moderado”, fixado com base nas medianas de preço a nível nacional e local. Os valores médios tomados como referência são, já de si, incomportáveis para boa parte da população, pelo que seria necessária uma oferta claramente abaixo deste patamar. A dita “classe média” em Portugal dificilmente consegue aceder a casas a preços médios de mercado nas principais áreas urbanas.

A resposta apenas pode vir do aumento expressivo da oferta pública, ou de uma substancial redução de impostos para os promotores privados que invistam no mercado da habitação de efetivo valor moderado. Sobretudo quando em parcerias para desenvolver projetos que mobilizem os imóveis e terrenos públicos subutilizados.