Um artigo recente numa revista americana politicamente empenhada trouxe de volta as questões da habitação, do turismo e da especulação imobiliária nas áreas centrais de Lisboa, muito presentes nos últimos anos na opinião publicada e no debate académico.

É certo que a “insustentabilidade” é ali abordada essencialmente no aspeto do acesso à habitação e ao arrendamento, mas, talvez por essa ser uma dimensão especialmente sensível, a publicação suscitou o habitual coro de lamentações, com críticas ao turismo e à especulação imobiliária, como se tivéssemos vivido no melhor dos mundos até este “flagelo” nos alcançar.

Mas não podemos pretender que o mundo começou agora. É preciso recuar no tempo para encontrar as causas ocultas dos fenómenos que nos afligem e que radicam em disfuncionalidades profundas do sistema territorial e do processo urbano.

O problema em causa centra-se na dificuldade dos nacionais em suportar os elevados encargos com o arrendamento habitacional, face ao nível de rendimento de que dispõem. Estamos perante questões da oferta de habitação, a preços compatíveis com o poder de compra local, e do funcionamento do mercado de arrendamento. Argumenta-se que, por motivos ligados ao crescimento da oferta turística e à especulação imobiliária numa lógica global, os preços nas áreas centrais de Lisboa terão descolado da realidade nacional, correspondendo antes a padrões internacionais.

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De facto, poderíamos dizer que o nosso paradoxo é que um dos países mais pobres da Europa tem como capital uma das cidades mais bonitas, interessantes e apetecíveis para viver neste continente, como o tem demonstrado o reconhecimento em inúmeras plataformas de opinião.

Independentemente da discussão do chamado “direito à cidade”, a impossibilidade de fixar uma população residente socialmente diversificada é um problema real, já que priva Lisboa de uma das condições essenciais da sustentabilidade urbana, a permanência de famílias que, usando o espaço público, dão vida à cidade e alimentam funções centrais de variada hierarquia, adquirindo bens e serviços de um espectro alargado. Então, como garantir este desiderato?

Sobre a perda de residentes no concelho de Lisboa, muito se tem dito e escrito, havendo interpretações mais ou menos obscuras de microvariações para todos os gostos. Mas, não nos iludamos, olhando para os dados censitários um facto é inegável, a grande quebra populacional em Lisboa deu-se nas décadas de 80 e 90 do século passado, muito antes do boom turístico, da expulsão de residentes pela especulação, da gentrificação e de tudo isso…

Como já procurei discutir aqui, o problema tem origens urbanísticas mais vastas, mas alguns dos aspetos da questão da habitação, quanto à procura, à oferta e à construção, merecem reflexão adicional.

Primeiro, dizer que não será apenas na dimensão habitacional que Lisboa se tornou insustentável, já que vários outros indicadores nos demonstram o colapso de elementos essenciais do sistema urbano. O conceito de sustentabilidade nas cidades consolidadas é complexo, envolvendo diversas condições, como procurei discutir aqui, sejam populacionais, habitacionais, funcionais, ambientais, económicas, culturais, de governação, ou até simbólicas. Na verdade, as áreas centrais de Lisboa são, desde há muito, insustentáveis em quase todos estes aspetos e as razões desta insustentabilidade estão nas escolhas que fizemos como sociedade e nas políticas públicas que nos conduziram até aqui.

Com exceção das expansões periféricas mais recentes – Olivais, Chelas, Telheiras, onde a promoção pública e privada se concentrou – Lisboa era, na transição para os anos 80, uma cidade envelhecida, com um parque habitacional degradado e desajustado dos padrões de vida moderna. O regime do arrendamento urbano levara a uma escassez da oferta habitacional, com as consequentes dificuldades para os jovens que pretendiam autonomizar-se, ou para os que procuravam viver em Lisboa, deixando-os sem alternativas na cidade consolidada.

Toda uma geração foi assim empurrada para a aquisição de habitação onde esta oferta existia – nas periferias mais ou menos afastadas – criando-se um novo estilo de habitar a cidade alargada, com novos padrões e novas centralidades, fluxo que potenciou o processo de loteamento-urbanização-construção nova.

A banca correspondeu a este paradigma, orientando-se para o financiamento da compra de casas novas, segurando o risco pelo valor das avaliações – na avaliação, a data de construção era critério dominante – e dando continuidade a uma cadeia de crédito que começava nos promotores. Lembre-se como rapidamente nos tornámos dos países da Europa com mais elevada percentagem de proprietários de casa própria.

A alternativa de compra de casas antigas nas áreas centrais era impensável, seja pela escassez da oferta, seja, também, pelo valor baixíssimo das avaliações dos fogos antigos, que não cobria o risco de crédito. Também não correspondia aos padrões culturais dominantes nos consumidores, que estigmatizavam, compreensivelmente, as casas velhas e os bairros antigos, lugares degradados no edificado e no espaço público. E claro, havia ainda o problema das obras…

A ideia de fazer obras numa casa antiga para a habitar não era nada popular à época e assustava qualquer um. As histórias de horror, por experiências negativas, financeira e tecnicamente, eram comuns e desmotivavam os mais afoitos.

Podemos apontar aqui todo um mundo de problemas ligados ao setor da construção. Desde logo, a vocação para a obra nova, muito pela impreparação para reabilitar, com a orientação das formações técnicas – dos arquitetos e engenheiros, aos operários – para a produção de edifícios novos, usando os sistemas construtivos atuais. Aliás, a reabilitação foi vista por muito tempo, na minha área profissional, como um género menor, preconceito só recentemente ultrapassado, muito, refira-se, pelas intervenções de qualidade em empreendimentos turísticos. Será de lembrar que a reabilitação representava, à época, no setor da construção em Portugal menos de 20% da atividade, por oposição a uma média europeia superior a 60%, muito se falando nos últimos anos na necessidade de alterar este padrão.

Apenas uma referência aos custos da reabilitação e ao mito de ser sempre mais cara que a construção nova, que tem servido de alibi para continuar a promover esta. Nos edifícios antigos, a reabilitação deve ser entendida como a intervenção mínima que requalifica, que permite o uso em condições satisfatórias para os standards atuais. A reabilitação, que não é construção nova e requer uma abordagem metodológica e técnica muito diversa, só será mais cara – e até incomportável – se for praticada com objetivos irrealistas, sem conhecimento e sem adequação dos meios de intervenção.

Ora, no contexto da cidade consolidada, a reabilitação é a questão essencial e deveria ser um desígnio das políticas públicas e do investimento. E nem falo da valorização do património urbano, só por si um argumento decisivo a favor da reabilitação. Mas seria necessária uma mudança profunda, cultural, económica e social, que reinventasse o papel da cidade antiga no imaginário coletivo, alterando a perceção de valor negativa que era a dominante até há pouco.

Curiosamente, a par deste movimento populacional centrífugo, desde os anos 60-70 que alguns artistas, intelectuais e profissionais liberais excêntricos se instalavam em casas que recuperavam nos bairros históricos, sobretudo Alfama, Mouraria e Castelo, replicando, embora em menor escala, o que sucedia noutras cidades europeias. Claro que na altura não se falava em gentrificação. Tive amigos e colegas que, enfrentando muitas dificuldades processuais, optaram por este estilo de vida, comprando e recuperando, por vezes, prédios inteiros, numa altura em que os preços eram muito acessíveis.

Nesta linha, será de reconhecer que, apesar das dificuldades, a vida nas áreas históricas centrais sempre atraiu alguns jovens, como se pode ver aqui. Este fenómeno, embora não tão expressivo entre nós como em outros países europeus, verificou-se não só em Lisboa, mas em vários centros históricos de cidades importantes, como o Porto, Guimarães ou Évora.

O esvaziamento da inner city e o empobrecimento da sua base social e económica, bem como da sua estrutura funcional, tiveram, por esta via do êxodo populacional, uma aceleração importante, comprometendo o papel da cidade antiga no contexto da cidade alargada e tornando-a vulnerável a fatores exógenos.

Sobretudo no que concerne à habitação – e, já agora, ao arrendamento comercial – a insustentabilidade de Lisboa reflete muito da nossa desconfiança no funcionamento do mercado, nas muitas e desastradas intervenções do Estado para o corrigir, seguidas por outras tantas para mitigar as consequências das primeiras, e assim sucessivamente. Tudo motivado, é certo, por uma ideia bondosa de proteger os mais frágeis, mas que acaba por criar perversidades, cristalizar injustiças e distorcer as relações entre os agentes. O arrendamento urbano será, por certo, um dos casos mais paradigmáticos deste problema.

Nas sociedades abertas, o mercado é uma força essencial no processo urbano, sendo que as políticas públicas devem atuar apenas de forma supletiva, para assegurar determinados objetivos de desenvolvimento vistos como socialmente desejáveis e assumidos pela governação do sistema. Dito isto, como se poderia – ou poderá, ainda – mitigar o problema da falta de oferta de habitação nas áreas centrais de Lisboa, compatível com o rendimento das famílias portuguesas?

Não é grande originalidade apontar que o extenso património imobiliário público, incluindo o da CML e de outras entidades facilmente mobilizáveis para esta estratégia, poderia ser usado para lançar no mercado uma quantidade substancial de fogos a preços controlados, atraindo uma população diversa. Mas isso implicaria visão e capacidade de iniciativa, coordenação e realização que raramente se tem manifestado na administração da coisa pública.

Acresce a importância de conseguir tornar disponíveis as largas dezenas de milhar de fogos vazios contabilizados em Lisboa. As razões para esta situação são complexas e muito diversas, mas a dimensão deste universo e o impacto que teria a sua disponibilização justificam uma mobilização estratégica de meios para este objetivo.

Ainda por via do mercado, uma abertura da autarquia que fomentasse um aumento substancial da oferta – cuja escassez é a base do problema – quer em reabilitação, quer em construção nova nos espaços intersticiais por preencher, conduziria a um equilíbrio dos preços. Esta orientação deveria favorecer expressamente o surgimento de promotores orientados para uma oferta a preços moderados.

Importa, no entanto, ter presente que fatores como a centralidade, as qualidades urbanísticas e a limitada dimensão territorial da cidade antiga, se refletirão sempre no nível de preços, e isso é natural num sistema urbano saudável. Dito de outra forma, viver no centro de uma cidade como Lisboa será sempre um privilégio, e atrair uma população social e economicamente diversificada deve ser um desígnio das políticas públicas, o que não significa necessariamente um aumento de gastos públicos, mas de boas decisões que contribuam para eliminar as distorções do mercado.

O turismo e a oferta hoteleira fizeram o seu trabalho de investimento e criação de valor, preenchendo um vazio – não apenas populacional – que corroía as áreas centrais de Lisboa. Foram o catalisador que promoveu a reabilitação do edificado e do espaço público e nos fez olhar de modo diferente para a cidade antiga. Agora, claro, muitos invejam um centro reabilitado e vibrante e proclamam aí desejar viver, mas com a condição de ser aos preços do tempo das trevas…