O problema da habitação, ou melhor, da sua disponibilidade nas principais cidades a preços comportáveis para as classes média-baixa e média, quer para compra, quer para arrendamento, chegou a um ponto crítico e ameaça explodir-nos nas mãos. Não sendo inesperada, a situação agudizou-se nos últimos anos, essencialmente pela escassez da oferta e pelo grande desvio entre o aumento do preço dos imóveis e o comparativamente muito menor crescimento dos rendimentos das famílias.

Os efeitos perversos deste duplo desajustamento – a escassez da oferta e a inacessibilidade dos preços – são bem conhecidos e manifestam-se a muitos níveis. Mas o acesso a habitação adequada, tido como um Direito fundamental, tem subjacente um conjunto de problemas que perpassam a sociedade portuguesa de várias formas, evidenciando muitos dos nossos atavismos e disfuncionalidades.

Nos últimos dias, e por causa de mais um anúncio bombástico do Governo sobre a matéria, o debate, nestas – onde temos podido contar, entre outros, com o Arquiteto Victor Reis, uma das pessoas que em Portugal melhor conhece o assunto – e noutras páginas, tem sido intenso, para o bem e para o mal. Em poucas questões da esfera pública há tanta divergência e tão vincada marca ideológica, havendo escasso consenso sobre causas, efeitos, motivações dos agentes, muitas vezes até mesmo sobre os factos em si.

Académicos, intelectuais, profissionais do sector e ativistas na pele de uns e outros opinam nos media, com variável acerto.

Permitam-me, primeiro, breves notas de enquadramento para recordar como chegámos à presente crise da habitação, nas duas vertentes essenciais de compra e arrendamento. Num próximo artigo, procurarei abordar algumas linhas de orientação que poderiam trazer soluções ao problema, mas que, por implicarem mudanças estruturais, quer no comportamento dos agentes, quer no funcionamento das instituições e até na sua cultura, afiguram-se-me impossíveis de implementar.

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A questão da confiança – entre os agentes do sistema e na ação do Estado, por via de políticas públicas previsíveis – é central nesta matéria, sobretudo no que concerne ao arrendamento habitacional. Invocar, como fazem alguns responsáveis, a função social da propriedade para justificar a sua mobilização é, em Portugal, de uma amarga ironia. Não tem essa “função social” sido assegurada há décadas pelos proprietários, nos sucessivos condicionamentos do arrendamento urbano, com as consequências bem conhecidas na sua descapitalização e na degradação do edificado? Os mesmos proprietários e o mesmo edificado ao qual se impõem, com ligeireza, obras coercivas.

Mas pior, o condicionamento genérico imposto, não distinguindo – e apoiando – as situações de real necessidade, foi socialmente injusto e desvalorizou o uso habitacional e comercial dos edifícios. As perversidades do regime de arrendamento permitiram, durante muito tempo e à revelia dos proprietários, o enriquecimento de inquilinos parasitários, por via dos subalugueres, e de comerciantes ineficientes, por via dos trespasses.

Além de suprir uma necessidade importante, a promoção privada de construção para arrendamento é uma forma de investimento, de aplicação de poupanças. Se, num contexto de estabilidade de políticas, de inflação nula ou muito baixa e de controle de preços, este negócio pode ainda ser aceitável e relevante no mercado, mesmo com condicionamento das rendas, assim que a inflação dispara e a incerteza quanto a políticas e ao comportamento dos agentes aumenta deixará rapidamente de ser viável. De facto, foi perante esta rutura que nos encontrámos no pós-25 de Abril, com a evidente falência do mercado de arrendamento, rutura que marcou toda uma geração e criou um novo paradigma no que concerne ao mercado habitacional e às próprias dinâmicas do território.

Ainda na década de 70, na incapacidade de deslindar os nós do regime de arrendamento urbano e perante um crescimento da procura habitacional muito expressivo nas maiores cidades, quer por via do crescimento populacional, quer pelas migrações para o litoral, o Estado encaminhou para a aquisição os que buscavam habitação, subsidiando os compradores através do crédito bonificado. A própria promoção pública de habitação seguiu este modelo para os segmentos médios do mercado, reservando o arrendamento para a resposta às populações mais carenciadas. Lembro que na época apenas a Caixa Geral de Depósitos e o Crédito Predial Português financiavam regularmente a compra de habitação, uma atividade marginal em termos de operações bancárias que rapidamente se tornou no negócio mais importante de todo o sector.

Note-se que não foram decisões livres e racionais do mercado, ou um enriquecimento ilusório do país, que ditaram uma opção generalizada pela compra, mas a incapacidade de resolver um problema antigo com o arrendamento que, apesar de algumas revisões – as principais pelo RAU de 1990 e pelo NRAU de 2006 – ficou na prática quase cristalizado até à reforma liberalizadora introduzida pela então ministra Assunção Cristas em 2012. O mercado de arrendamento deu então finalmente alguns sinais de recuperação, com um crescimento muito expressivo documentado entre 2011 e 2017, até que nova alteração de políticas inverteu esta tendência.

Por força da orientação para a compra, até ao início deste século viveram-se os anos de ouro da suburbanização e a afirmação de um novo paradigma de produção habitacional, baseado no ciclo “loteamento-urbanização-edificação-venda”, com as consequências para o modelo territorial que procurei discutir aqui. Este processo, a par das campanhas de obras públicas que se seguiram à adesão à CEE em 1986, consolidaram a importância do sector da construção: a construção era um dos motores económicos do país, a construção era o país.

No entanto, a solução de compra apoiada pelo Estado para resolver o problema do acesso à habitação revelou-se insustentável a prazo. A bonificação de juros no crédito à habitação, e os abusos a que deu azo, conduziram a uma crise orçamental no início deste século e à alteração da política, com reflexos diretos na situação que vivemos atualmente. Outra consequência foi um excesso de oferta, que o mercado levaria algum tempo a absorver, notando-se na altura uma certa dificuldade no escoamento da construção produzida e até uma correção, embora passageira, nos preços. Não esqueçamos que, funcionando os imóveis como colateral dos empréstimos, a ação da Banca será sempre para evitar a desvalorização desse ativo.

A situação atual de desajuste referida ao início, se foi influenciada por esta alteração na política do crédito, foi ainda resultado de um conjunto mais vasto e complexo de fatores que atingiram o mercado imobiliário e o modelo de produção habitacional. Aponto, sem grande aprofundamento, alguns deles.

Desde logo, a crise internacional do setor financeiro a partir de 2008, com um impacto fortíssimo no sector da construção em Portugal, levando a um elevado número de falências de empresas e a uma queda acentuada no investimento em habitação, com um ponto baixo na segunda década deste século. A quebra na produção de novos fogos, pela drástica redução da construção nova, rapidamente alterou para escassez o anterior excedente de edificações habitacionais em venda. A crise do setor financeiro levou ainda, e bem, à revisão das regras da concessão de crédito, para um maior rigor e exigência.

Depois, as alterações legislativas sobre a classificação do solo com vista à sua utilização, em sede de instrumentos de gestão territorial, introduzidas pela Lei de Bases da Política Pública de Solos em 2014. Estas alterações, embora indo no bom sentido na ótica do ordenamento do território, visto contrariarem as dinâmicas centrífugas e promoverem a consolidação das áreas urbanas, vieram perturbar o modelo vigente na produção de habitação nova, o “loteamento-urbanização-edificação”. Desde logo, por alterarem a expectativa da disponibilidade de solos para construção, levando ao seu aumento de preços.

Ainda, a afirmação crescente de um paradigma inédito entre nós, a reabilitação de edifícios nas áreas centrais, certamente muito impulsionada pela procura externa e o Turismo. Sendo embora um segmento muito específico, mas apetecível, do mercado, concorre na captação de investimentos e induz uma subida generalizada de preços nestas áreas. Como tenho referido nestas páginas, a reabilitação trouxe a descoberta por parte da procura habitacional interna de áreas até há pouco esquecidas e desvalorizadas no imaginário nacional, mas também confrontou os locais com preços formados por um mercado com outras referências.

Neste cenário, o Alojamento Local (AL) merece uma referência especial, até porque tem sido diabolizado no universo da reabilitação urbana. Não enfatizo, sequer, os méritos inegáveis que esta figura trouxe para o saneamento operado no alojamento paralelo, sobretudo em zonas balneares, trazendo para a legalidade – registo, regulamentação, fiscalização, tributação – um vasto universo de camas clandestinas. Apenas chamo a atenção para o facto de o AL, cavalgando a descoberta turística das áreas históricas, ter sido a oportunidade de romper com o empobrecimento por parte de um número de pequenos proprietários que, por uma razão ou outra, se tinham libertado de contratos de arrendamento ruinosos. Estes proprietários, não querendo, compreensivelmente, voltar às contingências do arrendamento habitacional, viram aqui o modo de rentabilizar os seus imóveis e financiar as obras há muito necessárias.

Alguma regulação mitigadora da sobrepressão do Turismo – e que deveria, sobretudo, ser indutora do investimento em habitação nas áreas centrais, mas isso é toda uma outra história – estava já a ser levada a cabo pelas autarquias, por exemplo em Lisboa. A não ser que se concebam novas políticas públicas que promovam o arrendamento, num quadro de regeneração urbana, não se pense que as restrições ao AL trarão de volta grande parte dos proprietários, exceto coercivamente, para a habitação convencional, justamente a situação de que quiseram fugir.

Estes e outros fatores viraram do avesso o mercado habitacional, tornando ainda mais crítica uma situação de desajustamento oferta-procura marcada por paradoxos do sistema, pelos efeitos perversos de políticas públicas inaptas e por uma insustentabilidade intrínseca.

Mais recentemente, a inflação agravou este cenário, fazendo disparar os custos da construção, por via do aumento de preços dos materiais e da energia, naturalmente refletidos nos preços de venda. A inflação trouxe ainda mais um obstáculo às famílias portuguesas, a escalada das taxas de juro dos empréstimos bancários à compra de habitação, que apanharam desprevenidos consumidores iludidos com um longo período de taxas historicamente baixas, alguns quiçá endividados além de limites realistas.

No entanto, nada nesta crise alterou de forma consistente o modelo dominante, com a prevalência da opção pela compra, uma vez que as sucessivas inflexões do quadro legislativo não chegaram a permitir o saneamento e a afirmação concorrencial do mercado de arrendamento. Ao contrário do que seria expectável num contexto de incerteza e de crescente mobilidade laboral, o arrendamento, não só não é uma alternativa financeiramente atrativa, como também reflete, da mesma forma, a escassez da oferta, o efeito de contágio da procura internacional e do Turismo e o aumento dos preços da construção.