As próximas eleições autárquicas, e a campanha que as antecede, têm suscitado as mais diversas intervenções, como se este momento fosse a oportunidade de alguma reflexão crítica sobre os efeitos das políticas públicas e a qualidade da governação, reflexão tão ausente entre nós.

A transformação nas áreas urbanas centrais é hoje das questões que mais dividem ideologicamente o debate público em Portugal, divisão a que não são imunes os meios académicos. Em Portugal, e não só, em matérias de urbanismo, as posições intelectuais à esquerda, manifestas ou difusas, prevalecem na academia, bem como na estrutura da administração pública.

Como liberal, tenho para mim que no debate das questões do urbanismo, matéria política por excelência, a esquerda tem desfrutado de um ascendente – que vem possivelmente do contexto ideológico na génese do “urbanismo científico”, como lhe chamou Françoise Choay – a que a direita não tem sabido contrapor argumentos e produção teórica de relevo. Neste referencial das origens teóricas do urbanismo e das políticas urbanas encontra-se também a relação difícil com a propriedade privada, sob influência dos vários socialismos coevos.

Lisboa é a minha cidade, aqui nasci e aqui tenho vivido quase toda a vida. Tenho observado, como residente e até por inclinação profissional, os resultados de dinâmicas recessivas, de políticas erráticas e demagógicas, de decisões míopes, de um nosso alheamento que só se sacode por forças exógenas. E, até há pouco, o vazio populacional, económico, funcional e simbólico que se foi instalando no coração da cidade.

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Morando em Alvalade, bairro em que, na sua conceção inicial, a integração social e a cobertura por equipamentos foram eficazmente contempladas, nos anos 80 os meus filhos sempre foram a pé para a escola pública, na instrução primária e no Liceu. A qualidade do projeto urbanístico do bairro de Alvalade ditou, naturalmente, o seu reconhecimento e valorização recentes, alimentando a procura e fazendo-o, actualmente, das áreas mais caras de Lisboa.

O regime de condicionamento das rendas levou a que, já nos anos 70-80, o arrendamento – para quem dispunha de contratos celebrados sob este regime – representasse um valor quase residual nos encargos mensais das famílias da chamada classe média, não refletindo o valor efetivo da habitação ou da centralidade, descapitalizando os proprietários, desmotivando o investimento e acelerando a degradação do edificado.

Mecanismo de destruição de valor e de promoção de injustiças sociais, exposto há décadas por Hayek no clássico Rent control, a popular paradox, este regime enquistou-se ao ponto de tornar quase impossíveis quaisquer tentativas de alteração. As reformas ensaiadas, ou exigem uma coragem política invulgar entre nós e se confrontam com forte reação, ou são mais do mesmo, em sucessivos períodos transitórios, iludindo a complexa e essencial problemática do arrendamento urbano. Ou então, tomam como solução penalizar os senhorios sobreviventes com ameaças de agravamento de IMI ou mesmo de expropriações.

Tal situação conduziu à rigidez da mobilidade habitacional urbana, com a ausência de oportunidades a empurrar gerações de “proprietários forçados” para periferias cada vez mais afastadas, e à especulação, por escassez da oferta, sobre as poucas oportunidades que surgiam num mercado de arrendamento distorcido. Enquanto isto, o extenso parque edificado público, que poderia ser chamado a um papel estratégico nesta matéria, permanece subutilizado, mal gerido, ou mesmo por inventariar.

O espaço público em Lisboa foi durante muito tempo desvalorizado em prol da circulação rodoviária e seus requisitos, e é talvez neste domínio que se nota um maior progresso nos últimos anos. Lisboa parece-me, agora, nas suas áreas centrais uma cidade civilizada, ao estilo das cidades europeias, em vez de um território inóspito e agressivo dominado pelo automóvel em alta velocidade. Independentemente do que se possa pensar das ciclovias e do detalhe técnico do seu traçado, o facto é que, juntamente com o melhor dimensionamento dos espaços de estadia e de circulação pedonal, trouxeram outro padrão de mobilidade e um estilo de vida urbano por muitos considerado impossível de aplicar entre nós.

Poderia, no que concerne à qualificação recente do espaço público e da melhoria das condições da sua fruição, tomar como exemplo a saudar a concretização das intervenções na frente ribeirinha, da Ribeira das Naus ao Campo das Cebolas, urgentes desde há décadas. Mas não resisto a ilustrar esta evolução com a Avenida da República que, na sua plena expressão, constituía uma verdadeira via rápida no coração da cidade, com túneis e numerosas faixas em que se circulava a alta velocidade, uma barreira física e simbólica quase inultrapassável para os peões. Hoje, parece-me inegável que as alterações introduzidas mitigaram tal efeito, reduzindo o espaço para os automóveis e humanizando este eixo das Avenidas Novas com separadores amplos, árvores, passeios mais largos, esplanadas, ciclovias, enfim, retomando o espírito de boulevard que era da sua identidade.

Apesar do emergir de um modelo territorial metropolitano e multipolar e do aparecimento de novas centralidades, que reorientaram muito do investimento para as periferias, a atração de Lisboa permanece alta em termos de emprego qualificado e da procura de bens e serviços de hierarquia elevada. Em virtude da prevalência da acessibilidade rodoviária e do transporte individual – questão crítica entre nós e alimentada por políticas públicas, apesar dos discursos piedosos em sentido contrário – circulam na cidade cerca de meio milhão de carros por dia. Lisboa é uma das cidades mais congestionadas do mundo, apesar de uma melhoria acentuada no último ano, talvez atribuível aos confinamentos por causa da pandemia Covid-19 (do 25º em 2019, para o 66º lugar em 2020 no ranking mundial, dados INRIX).

No entanto, e com a justa exceção do Dr. Sá Fernandes, não me lembro de vozes se terem levantado contra a construção – cara, mas nunca falta dinheiro público para estas iniciativas – do túnel das Amoreiras, paradigma de tudo o que não se deveria fazer, mas saudado como uma grande visão do autarca da altura. É um drama da democracia que o que é percebido como interesse imediato de um número expressivo de eleitores alimente, muitas vezes, más opções de política.

Atualmente, prepara-se mais uma investida de dinheiro público para continuar a densificar a rede do metropolitano, esventrando o tecido urbano consolidado para cobrir escassas centenas de metros a um custo faraónico, ao invés de alargar a rede às periferias, numa solução ligeira e de superfície. Parece evidente que se atenuaria assim algo do problema de trânsito atrás referido.

Durante 20 anos – entre 1986 e 2006 – mantive escritório na Baixa de Lisboa. Assisti na primeira fila às consequências do processo de abandono, perda de valor e degradação que atingiu aquela área, centro simbólico e jóia da coroa do património urbano lisboeta. Assisti, ainda, aos primeiros sinais da tão comentada dinâmica, de reinvenção e regeneração para alguns, de especulação, gentrificação e perda de identidade para outros.

Creio ser inquestionável que a situação de esvaimento populacional, funcional e económico, agravada por desastradas intervenções no espaço público do autarca em funções, estiveram na base do terrível incêndio de 1988. A reconstrução, operação pública de grande escala e custo, se por um lado contribuiu para a nobilitação da zona em termos comerciais, não acautelou a atração e a diversidade populacional que poderia e deveria ter promovido e redundou em mais uma oportunidade perdida de fixar habitantes no centro da cidade.

O caso da Baixa-Chiado também teve por efeito trazer à agenda política e mediática um tema inédito, a reabilitação urbana, agudizando-se a consciência da situação calamitosa das áreas históricas em Lisboa. Como resultado, tornou-se de bom tom em épocas eleitorais que os autarcas lançassem ações de alindamento de fachadas – lembro-me da operação de pintura na Rua da Madalena – abordagem cosmética que, disfarçando os efeitos, nunca lidou com as causas profundas da degradação destas áreas.

Quando comecei a dar aulas no ensino superior, no início dos anos 90, questionava amiúde os meus alunos, essencialmente suburbanos, sobre o uso que faziam das áreas centrais da cidade e o interesse em aí viverem. Surpreendentemente para mim, muito poucos frequentavam o centro e menos ainda admitiam aí querer viver. Todos partilhavam uma imagem de degradação, trânsito caótico e insegurança, a par de um mito de preços exorbitantes que não correspondia, na altura, à realidade. Agora, muitos ambicionam morar em Lisboa, embora os preços já correspondam ao anterior mito, o que me parece natural, visto refletirem finalmente o valor da centralidade, do investimento e da qualificação operada.

Lembro-me bem quando o Terreiro do Paço, uma das mais notáveis praças da Europa, era um enorme parque de estacionamento, o que diz bem da importância que lhe era atribuída. Um prédio inteiro na Baixa – arruinado, claro – valia pouco mais que um T3 na Linha do Estoril, os restaurantes, por falta de clientes, apenas serviam almoços e fechavam ao fim de semana, o comércio, decrépito e cada vez mais irrelevante no contexto da cidade, fechava durante o período do almoço e ao sábado ao fim da manhã.

A fragilização das estruturas dos edifícios pombalinos, agora muito imputada às intervenções recentes de reabilitação para a hotelaria e o alojamento turístico, começou realmente há décadas, com as obras realizadas nos pisos térreos pelo comércio local, para alargar montras e abrir os interiores de lojas.

Por vezes, quando trabalhava no escritório aos feriados e fins de semana, encontrava pequenos grupos de turistas com ar perdido, que me pediam indicações, encantados com o espaço urbano da Baixa, mas espantados com a degradação dos edifícios, por não verem ninguém na rua e por estar tudo fechado.

Foi a presença de turistas e o seu interesse por Lisboa que promoveu uma alteração profunda na perceção de valor dos bairros históricos, perceção que contagiou os locais e que lançou toda uma dinâmica de investimento privado e público que bem conhecemos. Em tempo, trouxe a valorização e o consequente aumento de preços, o preenchimento do vazio populacional, a alteração de padrões de comportamento e consumo e da estrutura funcional. No imediato, trouxe a abertura de pequenas lojas de proximidade, sobretudo por iniciativa de imigrantes, com horário de funcionamento alargado, que muito beneficiaram os utentes e os poucos residentes à época.

Este fenómeno da chegada de uma população imigrante no final do século passado, retratado de forma tocante nos Lisboetas de Sérgio Tréfaut, marcou profundamente alguns bairros históricos da cidade, sem que ninguém decente sentisse ameaçada a sua identidade, apesar dos muitos elementos exóticos aportados. Turistas e imigrantes como elementos de transformação urbana, trazem-me à ideia o cosmopolitismo como uma das marcas mais fundas da identidade de Lisboa, terra de “muitas e desvairadas gentes”. A magna questão da identidade, valor que, apesar de se basear em elementos essenciais, de longo prazo, inclui dimensões de construção e reinvenção permanentes – como a identidade de cada um de nós – não cabe nestas linhas. Só noto que, no debate urbano, tem sido esgrimida casuisticamente, à medida do interesse de argumentos de sentido único.

As cidades são processos, como disse Spiro Kostof. Processos marcados por equilíbrios instáveis num sistema complexo de agentes e território, em lógicas de competição e cooperação, com ações organizadas e espontâneas, públicas e privadas, valores e interesses, tradições e modas, elementos transitórios e permanentes. E devem ser espaços de liberdade. Não aceitemos visões redutoras que esquecem a sua natureza, a história, recente e remota, as dinâmicas urbanas e as políticas públicas que nos conduziram até aqui.