«O que foi o primeiro terço do ano de 1974 mais do que o “tempo de aceleração” da derrocada do regime? Derrotado pela abstenção crítica e pelo desinteresse manifesto nas eleições de Outubro, que foram as mais monótonas e repetitivas da sua história, o regime ensaiara uma deslocação de peças governativas em fins de 73, aliás com pouco sucesso. O ano de 74 começava com problemas graves que corroíam a sua credibilidade política. (…) O agravamento do custo de vida (assustador desde Novembro de 73), o racionamento de certos produtos elementares (v.g. gasolina), o desequilíbrio acentuado da balança de pagamentos, o clima de crise económica generalizada (em que a própria Bolsa caía depois de uma euforia especulativa de ano e meio) foram alguns dos “sinais” dos primeiros meses de 74. (…) Politicamente, as estruturas também se deterioravam. (…) A Assembleia Nacional eleita vivia em letargia absoluta, apenas quebrada por esporádicos elogios de actos e pessoas do elenco governativo. (…) O encontro anual da ANP em Tomar revelou o isolamento do chefe do governo e dos seus seguidores, que representava, no fundo, o isolamento de um regime sem mensagem nova a dar aos portugueses. (…) Ao mesmo tempo, e sobretudo a partir de fins de Fevereiro, aumentava também a temperatura no plano dos conflitos sociais. (…) Um governo em que, à falta de nomes novos, os principais postos ministeriais alterados foram redistribuídos pelos mesmos governantes da véspera (ou da antevéspera…). Em três meses e meio envelhecia um regime que se autocondenara pela força (…) de uma economia desgovernada, de um condicionamento político repressivo sem alternativas governativas (…).»
A citação exclui, propositadamente, algumas referências do texto que se referem a pormenores da época, mas quem pode ignorar as semelhanças com o presente? Quem pode recusar alguns dos factos ali relatados e hoje repetidos: as eleições ignoradas por cerca de metade dos eleitores; um resultado eleitoral já monótono e repetitivo; as deslocações de peças governativas; os problemas de credibilidade política do governo e das oposições; o agravamento do custo de vida; os sinais de possíveis racionamentos à vista; o clima de crise económica generalizada; a deterioração das estruturas de poder; o parlamento em letargia; o encontro do partido do governo que revela a falta de mensagem nova a dar aos portugueses; o aumento da temperatura no plano dos conflitos sociais; um governo que começou por recrutar na véspera e na antevéspera, no socratismo e no guterrismo, e que agora parece recrutar nas antecâmaras da criminalidade; e uma ausência de alternativas governativas.
O relato foi publicado no Expresso em 28 de Dezembro de 1974, escassos oito meses após a revolução, em jeito de balanço do ano que ali terminava. Neste particular retrato dos últimos meses do regime deposto, é especialmente interessante a forma como ali encontramos pontos em comum com os dias de hoje e o estado em que estamos metidos. Porque a vida está cheia de ironias, o texto foi escrito por Marcelo Rebelo de Sousa (publicado também no primeiro volume do seu Crónicas da Revolução, pp. 32-34, para poupar tempo a verificadores de factos).
Os revolucionários de hoje são os conservadores de amanhã, lição útil e de factualidade incontornável, mais evidente ainda num país, como o nosso, que parece apenas saber conviver com dois estados: o da situação e o da ruptura. Ora, num tempo como o destes dias, em que onde há vida inteligente se consegue sentir o clima do fim de um ciclo, não só governativo, mas do regime em si, torna-se fundamental que, constatando a degradação a que se deitou o situacionismo, o regime não venha a ser protegido apenas por receio de nova ruptura, mas porque se soube reinventar e progredir através de novas soluções.
Há pouco mais de um ano, lamentei aqui a inexistência de alternativas políticas ao PS e defendi que a mera alternância entre socialistas e PSD no Governo era irrelevante para o futuro do país: de pouco me interessa, de facto, que seja um ou outro partido a liderar o Governo se for evidente que o rumo do país não se altera em função dessa alternância. Na sequência desse texto, Henrique Monteiro, no Expresso, respondeu dando graças pelo facto de o PSD não desejar ser alternativa nenhuma, contentando-se com a alternância entre partidos, o que, no seu entender, salvaguardaria a democracia. Tentei replicar a ideia na altura, mas ao fim de um ano de maioria absoluta talvez se tenha tornado tudo mais claro.
A alternância (ou rotativismo) não é a democracia a funcionar – é apenas a situação a procurar sobreviver à ruptura. Mas o que evita a ruptura não é o desgaste do situacionismo através da alternância, porque esta provoca, mais tarde ou mais cedo, aquela. São as alternativas que asseguram a continuidade da democracia e, ao mesmo tempo, trazem as mudanças necessárias e fundamentais para que o país avance e para que a democracia subsista. Mas a alternativa parece, entre nós, um conceito algo esotérico. Nestes quase 50 anos de vida democrática, ela surgiu quase sempre por imposição externa, sobretudo pela adesão às Comunidades Europeias (há quase 40 anos, num processo de mudança interrompido mal a adesão se verificou irreversível) e pela insuficiente intervenção da troika (já há mais de 10 e imediatamente revertida). As alternativas geradas através das forças dinâmicas da sociedade e da vida política portuguesa verificaram-se, por razões diferentes, quando Mário Soares optou por combater o PCP e a extrema-esquerda em prol de uma democracia de tipo ocidental, e quando Sá Carneiro liderou o projecto da AD gerando, dessa forma, a criação de novo centro político no qual coexistiam duas forças, à esquerda e à direita, capazes de representar vias alternativas de exercício do poder numa democracia desejada por ambas. O desafio de hoje é, precisamente, que consigamos mudar através da nossa própria iniciativa, e não por imposição de terceiros.
Ora, o PSD continua, tal como no tempo de Rui Rio, a não constituir fonte de alternativa política. Com uma agravante: com um Governo em crise institucional, nem a sua capacidade de proporcionar alternância se verifica. Foi, de resto, isso que Marcelo Rebelo de Sousa quis deixar claro quando disse que não havia, de momento, alternativa ao PS – o que ali se dizia era que não era inequívoco que, indo a eleições, o PSD conseguisse ganhá-las e formar um Governo duradouro e estável. O Presidente não estava, seguramente, preocupado com alternativa, mas com alternância, e mesmo essa é, por agora, uma miragem.
Por outro lado, os restantes partidos da oposição parlamentar, além de não garantirem o rotativismo, não parecem representar também verdadeiras alternativas, mas antes soluções de situacionismo ou de ruptura diversas: do socialismo democrático do PCP à social democracia do Bloco, do lado da situação, da 4.ª República do Chega, do lado da ruptura, passando por uma Iniciativa Liberal em estado de doença infantil e dogmática que não está na situação, na ruptura ou na alternativa, o que resta?
Como o mundo em que nos inserimos ainda é, felizmente, o que é, e sendo as sociedades dinâmicas, como por natureza são, neste cenário, em que só existe situacionismo, ruptura e indefinições várias, não nos restam muitas opções. O país avesso a qualquer mudança, de ruptura ou de alternativa, satisfeito com a sua mediania, agradece a situação; o resto, não desejando rupturas mas saturado da situação, emigra ou educa os filhos para emigrar. Talvez chegue, por fim, um tempo desgraçado em que, sobrevivendo a situação a uma ruptura indesejada por todos, o país se divida exclusivamente em duas classes: a dos instalados de um regime mendicante e a dos beneficiários da distribuição do produto da mendicidade desse regime.
Para o futuro do país é indiferente se as oposições têm maior ou menor capacidade de apontar os erros e falhas do Governo. E será, até, indiferente se elas eventualmente conseguirem alcançar um ponto em que a alternância acaba por se verificar a seu favor. O que nos devia causar algum desespero é, de facto, a inexistência de uma proposta política alternativa que demonstre que o país pode ser diferente do que é hoje e do que se adivinha que venha a ser. Do PS não espero esse milagre: o partido tornou-se uma máquina de mera gestão e distribuição de poder e não de reformas. Era do PSD que se exigia outra coisa. E, pelo menos até agora, o que temos são anúncios de comissões, grupos de trabalho e listas de nomes cuja capacidade não discuto, mas que são poucochinho. Se ao fim de sete anos de oposição o PSD não consegue ter uma proposta alternativa substantiva, então é porque o PSD neste momento é um instrumento morto da vida política portuguesa. E os mortos enterram-se, não se elegem.