O que António Costa fez na declaração ao país do passado dia 11 de Novembro foi afirmar um ponto essencial em toda esta embrulhada em que estamos metidos. O Primeiro-ministro demitido-que-ainda-está-na-plenitude-das-suas-funções falou de alhos quando o processo judicial fala em bugalhos. O que aqui está em causa é saber se foram ou não contornados mecanismos legais, através de contactos privilegiados na esfera do poder, para obter um determinado fim. O Primeiro-ministro de um país democrático afirmou que o Governo tinha praticado actos legítimos, quando o que está em causa saber é outra coisa. É que o papel de um Governo é criar condições gerais e abstractas que facilitem os investimentos, não é ajudar determinados particulares a contornar a lei.

O mais fascinante em tudo isto é que parece haver uma generalizada aceitação deste género de práticas. António Costa sabe disso e usou o facto para afirmar a narrativa que deturpa tudo o resto. Tentou mesmo condicionar futuros governantes, contando com a simpatia dos portugueses neste aspecto. Ora, o que aqui está em causa não é saber se o Governo estava a ajudar determinado projecto a correr termos mais depressa (o que até faria algum sentido, se tal fosse transparente e envolvesse até a oposição no processo, por exemplo), mas antes saber se a participação de membros do Governo era feita para contornar a lei.

Da mesma forma, parece ser consensual entre os portugueses que o Estado pague a sociedades de advogados para que se escrevam diplomas legais. Não me parece uma prática razoável, tendo em conta que o Estado tem milhares de juristas nos quadros, mas assumamos que nessas sociedades de advogados há um grau de conhecimento e especialização que o Estado não possui e que, como tal, a prática até faz sentido. Dou isso de barato. Mas, mais uma vez, o que pode estar em causa em toda esta novela não é exactamente isso. É um privado que alegadamente paga a elaboração de um diploma que o beneficia.

Tal como há um razoável consenso acerca da concessão de benefícios a um município em troca de uma aceleração de um processo administrativo. Depende, naturalmente, do que possa estar em causa, mas será grave se o consultor pago pelo privado chantageou o presidente da câmara municipal com a perda de apoio político por parte do partido do Governo.

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As práticas em causa podem até não constituir crime. Mas evidenciam um facto: em termos de espírito do sistema, da forma de olhar para as instituições e para o papel de um Governo, de transparência, de cumprimento da lei, nós estamos ao nível da África subsariana. Se acham que é assim que se fazem negócios na Europa, então nós estamos a mais na Europa.

Ora, é tudo isto e muito mais que está sob investigação judicial. Não faço ideia se as matérias ali em causa constituem crimes. Não é esse o meu papel, mas é o trabalho de quem investiga, isto é, do Ministério Público. E essa função judicial não pode ser posta em causa em função da identidade do investigado. É, aliás, muito curioso que tanta gente esteja a recorrer à táctica de Donald Trump: se eu sou o alvo do processo, é perseguição; se são os outros, é justiça.

Do ponto de vista judicial, é isto que está em causa: o Ministério Público é o titular da acção penal, é a ele que compete investigar, abrir inquéritos, constituir arguidos, acusar ou arquivar processos. E essa legitimidade tem sido posta em causa pela narrativa com base num princípio anti-democrático: o de que o Ministério Público, quando pretende abrir inquéritos contra pessoas importantes, deve ter a absoluta certeza de que não só o inquérito resultará em acusação, mas também de que o julgamento subsequente deve resultar em condenação. É curioso como tanta gente se tem prestado a afirmar um princípio de desigualdade dos homens perante a lei para defender a manutenção de um status quo e para atacar o Ministério Público. Curiosamente, defendem que são os procuradores que atacam o Estado de Direito e a democracia por fazerem o que lhes compete. E mais absurdo se torna defender tal ideia perante um facto: se não houvesse investigação, se não tivesse sido aberto inquérito, até hoje Vítor Escária teria bem guardado o segredo dos 75.800 euros arrecadados em pleno palácio de São Bento. Mais: nós não podemos queixar-nos (com razão) do facto de existirem processos sem arguidos constituídos, como no caso Tutti-Frutti, e depois queixar-nos de outras pessoas serem constituídas arguidas noutros processos.

Não, as investigações não devem ser iniciadas através de conclusões: servem precisamente para chegar a alguma conclusão, mesmo que seja o arquivamento. E não vem daí mal nenhum ao mundo: a maioria dos inquéritos não resulta em acusações, há cidadãos anónimos constituídos arguidos todos os dias que acabam por ver os seus processos arquivados. Por que razão alguém poderoso deve ser tratado de forma diferente?

Neste momento, avança a narrativa da “normalidade” das práticas governativas e empresariais e, ao mesmo tempo, do espírito anti-democrático do Ministério Público. Ainda este fim-de-semana a comunicação social se prestou a difundir como facto uma ideia veiculada pelo advogado de um dos arguidos que, curiosamente, até afirmou que do ponto de vista subjectivo esse alegado erro involuntário não tinha relevância. Mas houve jornais que transmitiram o facto como consumado, o erro que demonstrava que o processo era um erro em si, que António Costa se tinha demitido por causa de um erro. É a tese do golpe. Lembra-vos alguma coisa? Trump? Lula? Sócrates?

Será assim ao longo dos próximos meses: o Ministério Público responderá à narrativa através da difusão de elementos processuais, o que é errado; o status quo prosseguirá o seu caminho de defesa desta “normalidade”. De que, no fundo, nada do que se passou é errado e de que o processo não resultará em nada porque não existem elementos suficientes para acusar. É um desastre democrático total: o Ministério Público desacreditado, muitas vezes por culpas próprias, e os titulares das instituições democráticas a desacreditarem todo o sistema.

No final de tudo isto, podemos até assumir que não há matéria criminal, mas que há matéria apenas ética. Ora, de que forma isso desculpa as instituições? Primeiro, insisto, tendo indícios da prática de crimes, o Ministério Público deve investigar, mesmo que esses indícios não se confirmem. Por outro lado, o poder político passou as últimas décadas a abdicar do controlo ético das instituições democráticas. Entregou erradamente esse poder de bandeja ao Ministério Público, sem lhe conferir mecanismos de prestação de contas e responsabilização. Trata-se de um erro perigoso, de facto. Mas legitimou o Ministério Público a agir na defesa do interesse da aplicação de critérios éticos sobre a sociedade e o poder político. Está tudo errado nisto e não há inocentes na história. Não há forma de vir agora gritar contra a suposta agenda anti-democrática do Ministério Público quando toda a gente que, durante anos, andou a exigir mecanismos extra-judiciais de controlo ético ou medidas legislativas de combate à corrupção foi, afinal, tratada como “populista”.

António Costa não se demitiu por causa de um parágrafo. Parece uma evidência dizê-lo, mas a narrativa do centro do poder, entre políticos, jornalistas e comentadores, tem sido de tal ordem que não é excessivo afirmá-lo. Costa demitiu-se por causa do resto do comunicado da PGR. Porque as suspeitas, venham elas a confirmar-se como criminalmente relevantes ou não, são graves e politicamente o Primeiro-ministro é responsável por ter ministros suspeitos de cometerem actos ilícitos através da influência do melhor amigo do próprio Primeiro-ministro. Tudo o que ali se investigava era, por si, grave, mesmo que não se tivesse feito a referência à competência do Supremo Tribunal de Justiça para analisar os elementos processuais que mencionavam o Primeiro-ministro.

Costa sabia disso e resolveu tomar a dianteira da defesa política de um processo judicial, em vez de se limitar a apresentar a sua demissão. Tal como há 20 anos resolveu tentar interferir nos destinos do processo Casa Pia, António Costa achou que ele e o PS eram maiores que a justiça e a democracia e decidiu, desta vez, concentrar politicamente em si a defesa de um processo judicial que, na verdade, contra si só corre em paralelo a este e do qual não há ainda sequer a constituição como arguido. «À política o que é da política, à justiça o que é da justiça»? Pois, pois.

A demissão era necessária, ponto final. Mesmo que seja legítimo perguntar a António Costa o seguinte: se as condutas dos membros do Governo eram “normais”, por que razão decidiu demitir-se? Será que o Primeiro-ministro se demitiu, afinal, porque considerava que politicamente não tinha condições para chefiar um Governo suspeito da prática de crimes em larga escala, ou até porque o seu chefe do gabinete tinha dinheiro guardado na sala ao lado da sua, ou porque com a demissão conseguiu tornar o processo judicial num mecanismo de vitimização? A dúvida acerca das motivações da demissão é agora legítima.

A demissão devia ter-se ficado pelo “eu demito-me, afirmo a minha inocência, mas fico ao dispor da justiça”. António Costa não fez isso. Pelo contrário, tem avolumado o descrédito das instituições: através da comunicação que fez ao país, onde encetou a defesa processual dele próprio, mas também dos arguidos neste processo, com recurso ao palácio de São Bento, e através do descrédito total que ofereceu ao Banco de Portugal, com a colaboração, mais ou menos ingénua, do próprio Governador.

Tudo isto é um desastre de dimensões inéditas. Na magistratura e na forma como a entendemos e nos poderes que lhe demos; no poder político e na forma como o mesmo tem gerido a coisa pública; na sociedade e na forma como olhamos para questões de transparência e ética; no jornalismo e no comentário político e na forma como boa parte dele vive em regime de concubinato com os centros de poder. É um desastre democrático, portanto. A democracia a destruir-se a si mesma. E, não me querendo alongar mais num tema sobre o qual tenho escrito com mais abundância do que gostaria, há em tudo isto um problema de fundo que me parece a origem de tudo isto e de resolução impossível: o país funciona demasiado em sistema de Corte, e essa Corte é o maior problema estrutural que o país tem, que não lhe permite sair deste buraco em que se vai enfiando cada vez mais. E não é por sermos um país pequeno. Pela Europa não faltam exemplos de países pequenos que não respiram este ar de cloaca e promiscuidade permanentes. É por sermos pequenos nas cabeças. É por nos mantermos num sistema de opacidade que privilegia quem nele se move e deixa o país num marasmo conivente. É um lodaçal sem fim.