Criticar o marxismo é hoje uma tarefa quase ociosa e que não suscita sem dúvida um imoderado interesse público. De facto a crítica do marxismo começou bem cedo, na Iª Internacional, pela voz dos anarquistas, prolongou-se na IIª Internacional, na qual vários autores, como Eduard Bernstein, viam já em certos aspectos da linguagem marxista, um cant, um calão destinado a disfarçar uma flagrante desatenção à realidade, e prolongou-se longamente pelo século XX, tocando todos os seus aspectos principais: económicos, históricos, políticos, filosóficos, para não falar da sua relação com os sistemas totalitários que em seu nome se ergueram. Resumindo: a crítica do marxismo releva mais, hoje em dia, de um interesse de antiquário do que outra coisa, por mais que, aqui e ali, apareçam proclamações da necessidade de um “retorno a Marx”.

Lembrei-me desta banalidade de base ao reler mais uma vez o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, publicado originalmente em 1848, e agora de novo traduzido em português por António Rodrigues, editado pela Guerra & Paz e precedido de um texto introdutório de Manuel S. Fonseca, essencialmente justo, que confronta o texto do Manifesto com as várias formas de barbárie social e política que a sua inspiração engendrou. Mas isso não me impediu de forma alguma de reler o Manifesto com interesse, um interesse que sempre senti nas releituras que, por dever de ofício, fui fazendo dele ao longo do tempo e que tem quase sempre a ver com a experiência da sua primeira leitura, por volta dos meus catorze ou quinze anos: o sentimento, quase alucinatório, de uma necessidade absoluta no curso da história da humanidade e de uma inteligibilidade, não menos alucinatória, dessa mesma história. Se me dissessem, por essa altura, que a história não possuía um sentido (na dupla acepção de direcção e inteligibilidade), a minha reacção seria a mesma que experimentaria se afirmassem que a mesa à minha frente não era real.

É claro que aos catorze ou quinze anos a minha ignorância não conhecia limites e quase nada sabia de Hegel, onde Marx foi amplamente buscar vários artifícios para suscitar tal sentimento (que, felizmente, um ano depois já havia sido varrido do meu espírito). Mas a ignorância e a ingenuidade não explicam tudo. Há no Manifesto (tal como em vários outros textos de Marx) vários elementos que induzem essa alucinação do sentido da história, que, através de várias fases, caminha necessariamente em direcção ao comunismo. E a análise desses elementos continua a ser uma boa razão para o interesse do marxismo não ser apenas um interesse de antiquário. Há no marxismo algo que se vê nele melhor do que na maior parte das ideologias políticas: o processo através do qual é construído um sistema de crenças aparentemente coerente e irrefutável, imune a todas as críticas que contra ele possam surgir. Fico obviamente por aquilo que me parece o essencial.

Tradicionalmente, a filosofia, particularmente a filosofia das ciências, enuncia três requisitos para que uma hipótese seja boa: a sua simplicidade, a sua inteligibilidade e a sua fecundidade (isto é, a sua capacidade de explicar um vasto número de fenómenos). O marxismo parece obedecer muito satisfatoriamente aos dois primeiros requisitos. O princípio é aparentemente simples: “a produção económica e a estrutura da sociedade de todas as épocas, que emerge necessariamente desta produção, constitui a base da história política e intelectual dessa época” (Engels). Em consequência, a “roda da história” (expressão de Marx) move-se de acordo com as transformações da estrutura económica e com a transformação consequente da relação entre as classes sociais, manifestando-se finalmente no conjunto das crenças jurídicas, filosóficas ou religiosas dessa sociedade. Tais transformações – é o aspecto hegeliano da lógica de Marx – obedecem a uma necessidade absoluta que é interna à sociedade e independente da vontade dos indivíduos: a burguesia, fazendo crescer desmesuradamente o proletariado, dá ela própria ao proletariado “as armas para a combater”; da mesma forma que o feudalismo criara inevitavelmente o advento da burguesia, “o que a burguesia produz são os seus próprios coveiros”; etc. Seria assim possível “compreender de modo teórico o movimento histórico no seu conjunto”.

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O comunismo, no qual o proletariado toma conta do poder, abolindo todas as outras classes, e, fazendo-nos passar do reino da necessidade para o reino da liberdade, acaba com a política como usualmente entendida (o poder político propriamente dito é apenas o poder organizado de uma classe para oprimir a outra, algo inconcebível numa sociedade sem classes), encontra-se deste modo inscrito, com férrea necessidade, no próprio coração do capitalismo. De um quadro lúgubre, passar-se-á a um quadro luminoso. Tudo isto não oferece apenas uma considerável simplicidade como uma apreciável inteligibilidade. Não é por isso de estranhar que Engels, junto ao túmulo de Marx, no cemitério de Highgate em Londres, tenha declarado (repetindo inconscientemente algo que Leibniz havia dito da sua própria hipótese da harmonia pré-estabelecida) em Março de 1883, que Marx havia formulado “uma lei tão simples e evidente que a sua simples enunciação é quase suficiente para assegurar o assentimento”. E o que não faltou ao longo dos tempos foi gente a subscrever tal convicção.

O problema – que não é um pequeno problema, mas um grande problema – vem do terceiro requisito das boas hipóteses: a fecundidade explicativa. Não é que tenham faltado marxistas, de génio e talento variável, a explicar tudo e mais alguma coisa segundo os princípios de Marx: provavelmente, nenhum assunto escapou às suas investidas. Lamentavelmente, a fecundidade explicativa do marxismo é largamente imaginária, podendo apenas, nos melhores dos casos, oferecer elementos secundários e auxiliares de explicação em alguns desses domínios. A própria história dos volumes póstumos do Capital (apenas o primeiro foi publicado em vida de Marx) ilustra este destino: as contradições e as inexplicabilidades no seio da doutrina atingem o estatuto de dificuldades irresolúveis.

E chego aqui ao que verdadeiramente interessa. O carácter alucinatório que tão esplendidamente o Manifesto Comunista exprime vem da aparente simplicidade e inteligibilidade da hipótese inicial, que permite que ela se projecte sobre a totalidade do real, sobre a história humana, como se contivesse em si a chave para a explicação de tudo. Mas não tem: a fecundidade explicativa falha por inteiro. Não temos direito a uma verdadeira satisfação, a um real preenchimento das expectativas. O que há é uma alucinação. Mas a alucinação é tão poderosa que continua a agir – espectralmente, é caso para dizer, como a imagem fantasmática de um morto: como um mito, diria Sorel — no interior de inúmeros espíritos por esse mundo fora. E a linguagem do marxismo prolonga-se num baixo-latim que sobreviveu à queda das grandes expectativas intelectuais do século XIX. Tal baixo-latim encontramo-lo sem dúvida no PCP, mas também no Bloco, apesar da cobertura “pós-moderna” do seu discurso, bem como em largas franjas do PS e até em gente mais à direita. Para o perceber, não há como voltar às fontes, e o Manifesto é uma das fontes de eleição. Secundariamente, funciona também como aviso contra todas as teorias que pretendam, de forma completa e acabada, dar-nos a última palavra sobre as formas de realidade das sociedades humanas.