Custa olhar para Portugal. É uma sociedade infeliz, disfuncional e desigual, em que pouco de comum liga as pessoas. A tendência, portanto, é a de desviar o olhar, para evitar estados de alma deprimentes. Mas deve-se, sem dúvida, olhar de vez em quando. Há uma espécie de obrigação. Não aquela que vem naturalmente, como com a invasão russa da Ucrânia. Essa mobiliza logo o estrato mais profundo das poucas convicções, no sentido verdadeiro, que podem existir em nós. Mas uma obrigação, de um modo ou de outro. Apesar de tudo, é o nosso país. Percebemo-lo melhor do que aos outros, mesmo que nos outros países tenhamos vivido por algum tempo. As pessoas falam a nossa língua. Temos modos comuns de comportamento. Partilhamos qualidades e defeitos. Há coisas que sabemos de nós que os outros não conseguem saber. Temos esses quase segredos em comum. Perceber isto é ser, de uma certa maneira, patriota. É um patriotismo involuntário, mas, para o bem e para o mal, efectivo.

E porque é que custa olhar para Portugal? Porque é palpável a situação cada vez mais difícil em que vive um grande número de pessoas. Basta andar na rua para se perceber isso. A única coisa que um pouco o disfarça é o tudo trazer em si a memória de uma pobreza que já vem de antes e o hábito dessa pobreza passada acomoda-nos melhor, com a perversidade natural destas coisas, à pobreza presente. Custa também a falta de pudor – e o pudor é uma virtude política – dos que se encontram, mesmo que personagens menores, no poder ou na sua órbita. Custam os “casos e casinhos” de que fala António Costa. Não só em si mesmos, na sua aleatoriedade, ou por razões que podemos chamar simbólicas. Custam porque revelam directamente o que é a sociedade, o que extravasa largamente o particular e o simbólico, e indica, sem margem para dúvida, um real que desfaz todas as ilusões: uns podem, outros não. Os poderosos podem, os outros não. Custa a ideologia que não ousa dizer o seu nome e que infelizmente o tem: o socialismo, reduzido a uma apropriação da sociedade pelos detentores do poder no Estado. No caso, sem margem para dúvidas, pelo PS. No ensino, na saúde, na habitação, nos transportes e na TAP, por exemplo. Costa bem pode cultivar um perfil de “pragmático”, o que quer que isso queira dizer. Mas é, provavelmente por falta de imaginação, um socialista puro e duro, se entendermos o socialismo como uma receita genérica para os males da sociedade fundada no controle de tudo pelo Estado. Sem que a sombra de uma outra ideia que não essa algum papel jogue nas decisões do governo. E sem que um só projecto para o país o habite, fora de umas coisas vagas que comunica num jargão burocrático ininteligível e estéril. Ideias: grau zero. Apenas a ambição do domínio de uma facção: o PS. Mesmo que com o eclipse do futuro inteiro do país, que se tornou literalmente impensável. Estas coisas todas, e muitas outras mais, põem-nos a sonhar com uma sociedade diferente. O pior põe-nos a pensar no melhor. Não o melhor concebido como uma teoria muito perfeita e acabada da sociedade, como aquelas que muitos crêem possuir. Não há nenhuma teoria perfeita e acabada da sociedade, pela boa e simples razão que a sociedade, o modo de ser da existência social – a sua ontologia, se se quiser –, não se deixa capturar por nenhuma teoria em particular, ao contrário do que acontece, e também por razões ontológicas, por exemplo, em física. Há, sem dúvida, factos maciços que o mínimo de atenção à realidade revela como evidentes: que a economia de mercado funciona mais eficazmente que as alternativas que lhe foram imaginadas e que o controle pelo Estado das empresas tem geralmente muito más consequências. Mas, para perceber isso, não é necessário munirmo-nos de qualquer teoria.

O que há, na verdade, é um vasto conjunto de teorias, cada uma exprimindo, com maior ou menor felicidade, certos aspectos da vida social e certas concepções particulares da justiça. É uma sociedade que dê guarida a essa pluralidade de concepções que podemos pensar como antídoto aos presentes tempos em que uma facção tomou conta de tudo, paralisando a vida política e reduzindo a cidadania a um estado de torpor de que ela tem dificuldade em acordar.

Não há talvez autor como Aristóteles, na Ética a Nicómaco e na Política, que nos possa ajudar mais nessa reflexão. Pelo menos um Aristóteles lido a partir das suas concepções mais gerais do que faz uma sociedade humana justa e da possibilidade de viver uma vida boa, aspirando à felicidade, que é o desejo que move os seres humanos em geral. Não há páginas melhores sobre esse desejo do que aquelas que a Ética a Nicómaco, um dos mais belos livros de filosofia jamais escritos, a ele dedicou. A felicidade, pode-se ler aí, é o fim de todas as nossas acções e a boa sociedade deve ser o lugar onde os homens, em conjunto, deliberam sobre os meios para atingir a sua realização.

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Uma tal sociedade só pode existir se nela encontrarmos o que ele chama amizade política. Vem na Política que a amizade é a escolha reflectida de viver em conjunto e essa vida, feita de belas acções, é uma vida bela. É a amizade política que funciona como o elo que liga os vários cidadãos – o contrário, portanto, de um espírito de facção que visa o domínio de um grupo de cidadãos sobre outros.

Não que Aristóteles ambicione uma espécie de concórdia que interdite a pluralidade e o conflito. Muito pelo contrário. A tonalidade anti-platónica do que ele escreve é muito clara. A unidade que deve presidir à sociedade, a concórdia desejável, é uma unidade fraca, não uma unidade forte que, precisamente, anularia a pluralidade e o conflito necessários para a vida em sociedade. A boa concórdia não reside numa simples conformidade de opinião e diz respeito a fins praticamente importantes e susceptíveis de interessar a muitos, que estão simultaneamente de acordo consigo mesmos (pensam por si próprios) e de acordo uns com os outros (pensam colocando-se no lugar do outro). A sociedade onde a felicidade deve ser buscada é aquela em que os indivíduos não são todos semelhantes uns aos outros, podendo prosseguir a sua vida individual em liberdade.

É nas democracias que esse tipo de amizade política melhor se encontra. Enquanto que nas tiranias a amizade e a justiça não desempenham senão um fraco papel, nas democracias, pelo contrário, a sua importância é extrema, pois há muitas coisas comuns aí onde os cidadãos são iguais. O cidadão, tal como Aristóteles o concebe, existe sobretudo nas democracias. É nelas que a multiplicidade melhor convive com a unidade e por isso elas são o mais estável dos regimes. A amizade política dá-se, portanto, aí onde há muito em comum entre seres diferentes entre si que convivem em igualdade, podendo cada um desenvolver as suas excelências, ou virtudes, individuais.

Não há, nisto que disse, qualquer determinação particular de um modelo concreto de sociedade que se deva seguir em detrimento de outros. Há apenas um quadro geral no qual a pluralidade dos modelos concretos se pode inscrever. E é esse quadro geral que devemos buscar como antídoto à infelicidade que vemos à nossa volta, ditada pela falta de amizade política que uma facção que se vê como proprietária do regime promove. Com efeito, a amizade política e o espaço daquilo que temos em comum vão minguando a olhos vistos, ao mesmo tempo que o PS alarga o seu poder sobre tudo, como se a pluralidade fosse esmagada por uma unidade de facção que tudo invade. O resultado é uma sociedade infeliz da qual apetece desviar o olhar. Até porque quem nela detém o poder não olha para nós, enquanto finge olhar por nós.