Estou em Inglaterra para o primeiro encontro de uma nova rede dedicada a explorar a dimensão “cinzenta”, irregular, híbrida da guerra. A invasão russa da Ucrânia seria sempre um tema inevitável. A destruição da barragem de Nova Kakhovka tornaram-a ainda mais incontornável. A intenção é abordar a questão a partir da história. É sempre uma boa ideia: os padrões do passado são especialmente importante para conseguirmos analisar melhor informação necessariamente incompleta sem nos deixarmos cair em manipulações ou falsas equivalências.
Rebentar barragens na história da guerra
Sei com certeza o que aconteceu em Nova Kakhova? Não. E se vierem a público novos dados credíveis, claro que irei rever a minha interpretação. Com os dados disponíveis para já é claro que a narrativa russa não faz sentido. Alegam que foram ucranianos para privar a Crimeia de água. Mas a península não morreu de sede quando a Ucrânia cortou o canal que a abastecia entre Março de 2014 e Março de 2022. Sabemos que a Rússia tem apostado em destruir sistematicamente a infraestrutura crítica da Ucrânia. Sabemos que arrasou Mariupol, cometeu crimes de guerra em Bucha, devidamente documentados por vários relatórios da ONU e da OSCE. Agora querem convencer-nos que não iriam destruir a “sua” barragem e inundar os “seus” territórios? Por fim, os russos alegam que os chefes militares ucranianos no passado pensaram em rebentar a barragem. É verdade. Mas não o fizeram quando isso fazia sentido militar, no ano passado, quando pretendiam dificultar o abastecimento de tropas russas em Kherson, na margem ocidental do rio Dniepre, e perturbar a sua retirada.
Os indícios são circunstanciais, mas apontam na direção da Rússia. E a história também. Só conheço exemplos passados deste tipo de ação para criar um grande obstáculo natural com vista a travar ofensivas perigosas. A Holanda rebentou os seus diques em 1672 para parar as tropas invasoras de Luís XIV. A China fê-lo no Rio Amarelo, em 1938, para travar os invasores japoneses. A União Soviética fê-lo na região de Zaporizhzhia para tentar travar a invasão nazi, em 1941. Não conheço nenhum caso em que isso tenha sido feito para facilitar uma ofensiva. E é lógico. Que interesse teriam os ucranianos em criar um enorme obstáculo natural a eventuais avanços numa ampla zona da frente, ou em desviar atenção e recursos para acorrer a uma emergência humanitária?
A falácia do cinzento
Há zonas cinzentas na vida. Até na ciência mais exata há buracos negros. E a guerra é, por excelência, o reino da incerteza, em que o acaso e o inimigo têm um papel decisivo. Os clássicos da estratégia de Sun Tzu a Carl von Clausewitz defendem que na guerra esta zona nebulosa é importante, inevitável e até desejável. Sun Tzu, há dois mil e quinhentos anos, era um defensor da desinformação, recomendando: quando se é forte, deve-se parecer fraco.
É fundamental, no entanto, termos o cuidado de não cair na falácia do cinzento. A invasão russa da Ucrânia veio mostra os perigos de se acreditar demasiado na própria propaganda ou nos efeitos miraculosos da guerra híbrida em geral e da desinformação em particular. Recordo que a Rússia era vista como campeã deste tipo de guerra híbrida. Esta alegada superioridade na guerra híbrida e na desinformação era uma das razões de alguns analistas no Ocidente terem transformado o General Gerasimov, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas da Rússia, num génio da estratégia. Mas Putin tanto negou a invasão da Ucrânia, que acabou por enganar os seus próprios soldados e a sua própria população que não estavam, de todo, preparados para uma guerra intensa e prolongada. Mais, quando a Rússia hoje desmente ou afirma qualquer coisa, a reação natural é de grande ceticismo.
Esta falácia do cinzento continua a ser ativamente encorajada pelo Kremlin. O objetivo, como bem explicou Peter Pomerantsev é convencer as pessoas que nada é verdadeiramente certo e, portanto, tudo é possível. O regime de Putin já desistiu de fazer as pessoas acreditar na sua bondade. Prefere apostar em promover o descrédito e o cinismo generalizado em relação às alternativas. Repetir acriticamente esta e outra propaganda russa não é um sinal de sofisticação, nem de uma análise série da realidade desta guerra. E dizer que há analistas que repetem acriticamente propaganda russa desde o início desta guerra não é apelar ao seu cancelamento, nem atacar a liberdade de expressão. É participar no normal exercício de escrutínio, parte de um debate público normal num país livre. Censura é o que faz a Rússia com quem não segue a linha oficial de apoio à invasão, com penas de prisão que podem ir até aos 15 anos.
Também não é sinal de grande independência de espírito ou superior capacidade de análise dizer que há duas opiniões sobre esta guerra. Pode-se dizer isso sobre qualquer fenómeno relevante. Aliás, ainda hoje há quem afirme que a Terra é plana e que nunca existiu o extermínio nazi dos judeus. Há também muitos americanos que consideram que Trump foi o melhor presidente dos EUA e que as eleições de 2020 lhe foram roubadas. Mas a Terra é redonda, o genocídio nazi de milhões de judeus é um dos factos mais bem documentados da história, as alegações de fraude eleitoral de Trump foram rejeitadas como absurdas e falsas mais de 40 vezes em múltiplos tribunais, muitos com juízes republicanos. E a Rússia invadiu a Ucrânia, que nunca aderiu à NATO, e não invadiu a Finlândia, que o fez.
Há zonas cinzentas na vida e na guerra, mas isso está muito longe de querer dizer que tudo é cinzento. E estabelecer falsas equivalências é um sinal de preguiça ou de cumplicidade com teses duvidosas sem se ter a coragem do afirmar. Rigor é dizer que embora a Ucrânia esteja a combater por uma causa justa, não tem garantida a vitória nesta ofensiva. Para a Ucrânia recuperar grande parte, e mais ainda todo o território ocupado, terá não só de ser exemplar numa manobra ofensiva combinada muito exigente e custosa, precisaria também que a certo momento a frente russa colapse e com ela a vontade e capacidade da Rússia continuar a combater. Não sabemos, não podemos saber hoje, se será assim. Até porque Putin pode decidir escalar se se sentir ameaçado. A guerra não é um conto infantil ou um filme de Hollywood com um final feliz garantido em que os bons ganham sempre.