As palavras têm uma força imensa – é através delas que construímos o nosso entendimento dos fenómenos sociais. É por isso que o combate político se ganha quase sempre controlando a linguagem. Fazê-lo é escolher o léxico com que se debate determinado fenómeno, é delimitar a primeira percepção geral sobre o problema em causa, é impor à partida uma visão política, é definir a ortodoxia. É, portanto, a forma mais eficaz de controlar a reflexão sobre um tema: normaliza um certo posicionamento político, impõe-no como senso-comum e, por fim, dificulta o aparecimento de visões alternativas, que passam a ser contra-intuitivas.

Lembrar que existem inúmeros casos na história de controlo político da linguagem é apenas dizer o óbvio – de uma forma ou de outra, foi sempre essa a ambição dos regimes autoritários. Mas é um erro de análise comum circunscrever a questão aos regimes autoritários, obcecados com o controlo populacional. Nas democracias liberais, a linguagem está no centro do combate político e cada partido faz os possíveis para conseguir normalizar a sua visão, para assim obter uma vantagem legítima sobre os adversários. Daí que os políticos recorram reiteradamente a frases sonantes e expressões originais. Daí que os partidos façam corridas para introduzir primeiro um tema na agenda. Daí que os partidos se estendam a várias organizações (como sindicatos), assim multiplicando os canais de transmissão da sua forma de ver o mundo e transmitindo uma falsa ideia de consenso em seu redor. Em Portugal, todos os partidos o fazem. Por exemplo, à direita, a expressão “geringonça” foi inscrita no debate com o propósito de descrever a maioria de apoio ao governo PS como algo atabalhoado e frágil. À esquerda, o uso reiterado de expressões como “precariedade” impôs um enquadramento para qualquer debate sobre legislação laboral.

Tudo isto é normal e legítimo num regime democrático. Onde se torna ilegítimo é quando o domínio da linguagem serve para ostracizar adversários e lhes retirar legitimidade política. Essa é uma fórmula anti-democrática, que converte adversários em inimigos, que transforma discordância em delito de opinião, e que aproxima o combate político de uma guerra total que visa a aniquilação do inimigo. E é isso que temos visto um pouco por todo o mundo à boleia dos populismos que procuram tomar conta do sistema político – polarização total e campanhas eleitorais focadas quase exclusivamente na destruição do campo oposto.

Em Portugal, observa-se uma caça-às-bruxas em busca das sementes do populismo anti-democrático – e não faltam alegados paladinos da democracia a acusar a direita de estar a conjecturar um ataque aos alicerces do regime (basta ler Francisco Louçã, Daniel Oliveira, Isabel Moreira, entre outros). O que é extraordinário é que essa caça-às-bruxas é, ela própria, a expressão maior do estado do populismo em Portugal: procura assentar o entendimento geral de que a direita não tem legitimidade democrática, dificulta a apresentação de alternativas políticas à direita e normaliza o radicalismo dos partidos eurocépticos da nossa esquerda.

Está em curso, portanto, uma batalha pelo domínio da linguagem, neste caso pela definição de “populismo”. Uma batalha que, como se percebeu na convenção do Bloco de Esquerda deste fim-de-semana, é fundamental para o processo de reabilitação dos bloquistas: a melhor forma de se apresentar como moderado (para chegar ao governo) é acusar os outros de radicalismo (na direita). Afinal, o melhor esconderijo é mesmo onde ninguém se lembra de procurar: à vista de todos. Enquanto os olhares estiverem a ser direccionados para a direita, poucos verão que as manifestações de populismo vêm, sobretudo, de uma esquerda que está à beira de tomar o poder.

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