No sábado, três deputados do Chega tentaram participar na manifestação, em Lisboa, sobre o tema da Habitação. Digo que tentaram porque a sua presença foi mal recebida, de tal modo que outros manifestantes agrediram os deputados, física e verbalmente. A violência escalou, ao ponto de os deputados terem de abandonar a manifestação sob escolta policial.

Participar numa manifestação legalmente organizada é um acto livre de cidadania, um direito que a ninguém pode ser retirado. Isso é válido para qualquer indivíduo, e não pode deixar de o ser para um deputado eleito — que não só participa enquanto cidadão, como foi eleito para representar outros cidadãos. Por isso, há que reafirmar o que deveria ser óbvio: é intolerável exercer-se qualquer forma de intimidação para diminuir direitos de cidadania.

Ao Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, exige-se imparcialidade no tratamento dos vários deputados e a defesa da instituição parlamentar. Só pode ser visto como uma falha grave que Augusto Santos Silva não tenha inequivocamente condenado a violência contra os deputados do Chega. Ainda mais quando utiliza os seus canais de comunicação para criticar outras situações de violência e intimidação políticas. Só nos últimos dias, fê-lo acerca de um lançamento de livro interrompido e acerca de um protesto de activistas climáticos que fizeram alvo de um ministro. Tinha o dever de o fazer também quanto às agressões aos deputados do Chega.

Em plenário da Assembleia da República, confrontado por André Ventura sobre a ausência de reacção ao sucedido no sábado, Augusto Santos Silva fez uma condenação selectiva às agressões contra os deputados do Chega. Se, por um lado, foi taxativo em afirmar que a violência havia sido condenável e inaceitável, por outro lado, sugeriu que os deputados do Chega se teriam imiscuído numa manifestação que tinha objectivos políticos diferentes dos seus — dando a entender que as agressões foram resposta a algum tipo de provocação. A tomada de posição é lamentável, porque serve de justificação implícita para a violência. A conduta de Augusto Santos Silva, enquanto Presidente da Assembleia da República, foi deliberadamente discriminatória contra os deputados do Chega, falhando em estar à altura do cargo que ocupa.

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Há quem se agarre a nuances deste enredo para enaltecer a postura de Augusto Santos Silva. Mas é o caminho errado, pois nenhuma dessas nuances altera o que seja. É verdade que André Ventura dramatizou o seu protesto e saiu do hemiciclo parlamentar, seguido por todo o grupo parlamentar do Chega, num golpe mediático que amplificou a discussão e lhe garantiu a abertura dos telejornais — mas isso não lhe retira razão. É verdade que André Ventura havia já convocado uma conferência de imprensa, na qual se dirigiu em termos pouco próprios ao Presidente da Assembleia da República — mas isso não justifica que Santos Silva deixasse de censurar a violência contra os deputados do Chega. É verdade que a ida dos deputados do Chega à manifestação poderá ter sido motivada pela intenção de criar um episódio de vitimização — mas, mesmo que assim fosse, tal não justificaria as agressões que sofreram. É verdade que a manifestação tinha maior ligação política a movimentos de esquerda — mas isso não pode impedir cidadãos ou políticos de direita de participar nela, até porque a Habitação é um problema transversal. É verdade que o Chega alegou ter sido convidado e que a organização da manifestação negou tal convite — mas isso é irrelevante, pois ninguém carece de convite para participar numa manifestação.

As picardias parlamentares entre Augusto Santos Silva e André Ventura passaram a ser uma rotina do espaço político. Se é óbvia a motivação de André Ventura para manter essa conflitualidade, que lhe garante atenção mediática, abundam as considerações sobre as motivações de Augusto Santos Silva. Há quem considere que faz parte de uma estratégia de promoção de uma candidatura à Presidência da República. Há quem acredite que o objectivo é favorecer o PS, que beneficia do bloqueio à direita que a ascensão eleitoral do Chega provoca. Se calhar, são ambas verdadeiras. Se calhar, são ambas falsas. Pouco importa: Augusto Santos Silva deve ser julgado pela dignidade do seu desempenho enquanto Presidente da Assembleia da República, e não em função de outros objectivos que tenha. E esse desempenho é mau — porque sistematicamente parcial, como este e outros episódios passados o demonstram.

Lamento muito que, no debate público, tão raramente se defendam as instituições e quase sempre estas fiquem abafadas por interesses partidários. É inaceitável que deputados sejam agredidos numa manifestação e é chocante que, por estes deputados em particular serem do Chega, tenha havido tanta indiferença. Não é necessária muita imaginação para adivinhar a comoção que se teria sentido caso os deputados agredidos fossem de outro partido. Sim, eu sei (e tenho-o escrito várias vezes), o Chega tem muito de detestável. Mas continua a ser um partido com assento na Assembleia da República, que representa milhares de portugueses. Abdicar das regras democráticas em relação ao Chega equivale, portanto, a abdicar das regras democráticas tout court. É lamentável que tantos se esqueçam disto. E, pelas funções que exerce, é inaceitável que Augusto Santos Silva seja um dos esquecidos.