Cobertas de lama. Sentadas à porta dum estabelecimento comercial igualmente coberto por aquela pele ocre e espessa que cobre Valência e povoações limítrofes, duas mulheres fazem guarda. Esperam assim evitar que a seguir à maré de lama chegue a onda do saque ao seu negócio de bijuteria que obviamente está longe de corresponder ao conceito de artigo de primeira necessidade, mais a mais para quem está no meio duma catástrofe.

Quanto tempo é necessário para que uma sociedade deixe de funcionar? Para que se passe das regras da civilização para a lei do vale-tudo? Dir-me-ão: mas em Valência tem-se manifestado o melhor da solidariedade. Sim, é certo, mas, pergunto, quando? Há uma espécie de interstício temporal, ainda a água escorria por todo o lado e as autoridades não estavam no terreno, em que, parafraseando o título de um artigo do Observador, sem água, luz ou rede, se viveu “o apocalipse”  em localidades como Benetússer, Paiporta ou Aldaia.

Não se esperaria que escassas horas bastassem para que num país europeu se começassem a pilhar jóias, televisores ou telefones móveis. Na verdade é como se a barbárie — mexicanização chamou-lhe há dias o ministro francês do Interior, a propósito de confrontos em Poitiers envolvendo dezenas de pessoas disparando “todo o tipo de armas” — estivesse aqui sob o manto diáfano da crescente assepsia, da regulação, do discurso em que cada palavra é pesada e medida. Ou talvez o caldo de cultura da brutalização das nossas vidas seja precisamente a forma como nos agarramos a esse manto na esperança que ele nos proteja desse esboroar das regras da sociedade.

Afinal o que está a acontecer com a violência na periferia urbana de Lisboa senão o estender desse manto? Este sábado foi assim: Um homem foi baleado durante a madrugada deste sábado no bairro da Cova da Moura, Amadora, tendo dado entrada no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, com ferimentos na coxa, disse fonte policial. Segundo fonte da Polícia de Segurança Pública (PSP), a vítima de 38 anos alega ter sido baleada por um homem que passou de carro e disparou contra ela, na rua principal do bairro da Cova da Moura. O homem dirigiu-se ao Hospital São Francisco Xavier pelos próprios meios, onde deu entrada pelas 06h24, com ferimentos de bala na coxa direita.  Antes que o dia acabasse outro tiroteio, desta vez no Cacém: “Uma desordem acabou, na tarde deste sábado, com um homem baleado, junto à estação da CP do Cacém, em Sintra. A vítima, de 36 anos, foi transportada ao hospital numa viatura particular e a PSP, que já identificou cinco suspeitos, reforçou o policiamento naquela área.” Na noite de quinta para sexta os incidentes tiveram lugar nos Moinhos da Funcheira, Amadora: 10 encapuzados  atiraram pedras e petardos contra carros e a porta dum prédio. Na quarta, um sem-abrigo foi esfaqueado junto ao Colombo… Mas já não há problema algum.  É lá um assunto entre eles e que só afecta as pessoas que vivem nesses sítios. Desde que não haja consequências políticas tudo está bem.

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Por agora, e à semelhança do que já se viu noutras geografias, os grupos vão serpenteado e deixando atrás de si um rasto de carros queimados, petardos e tiros. Mesmo que morra algum dos envolvidos a sua morte não passará das notícias sobre “rixas”. Os feridos esses agora nem incomodam o INEM: vão para o hospital pelos seus próprios meios.

Tudo voltou à normalidade. A PSP passa em carros que não inteceptam ninguém. O Presidente já foi ao bairro do Zambujal. Os comentadores assanham-se com o ódio de estimação do momento — agora é o Ricardo Leão — que lhes permite dar mostras da sua superioridade retórica e intelectual. Durante algum tempo estará tudo bem, até que um facto inesperado ou uma intervenção da PSP (que é quem sobra nos periferias donde se retiram os terminais de multibanco, os CTT, as lojas e se desviam as carreiras de autocarro) gere uma nova onda de indignação e sobretudo de perplexidade perante o que sabemos que existe mas não queremos ver.

Quantos dos oito mil soldados que a Coreia do Norte enviou para combaterem na Ucrânia regressarão ao seu país? Não me refiro apenas aos muitos que provavelmente regressarão num caixão mas também àqueles que sobrevivendo se tornam testemunhas dum mundo absolutamente diverso daquele que a propaganda do regime lhes ensina. Como reagirão ao regressar à Coreia do Norte? Não sei mas acho que não sou a única a estar na ignorância. E na expectativa.

Na Bolívia, Evo Morales está acusado de violação e abuso sexual de menores. Entre outros factos surge a acusação de Morales ter vivido com quatro menores aquando do seu exílio na Argentina, então governada por um presidente dito feminista que, depois se veio a saber, agredia sistematicamente a mulher. Para evitar que Morales compareça em tribunal, os seus apoiantes atacam agora quartéis e fazem militares como reféns.  No Chile, presidente Boric é acusado de ter protegido o seu subsecretário do Interior, Manuel Monsalve, envolvido num caso de abuso sexual e manipulação de provas para encobrir esse mesmo abuso. Nada disto surpreende muito e acontece em todos os quadrantes políticos. O que é diferente à esquerda é a forma como a denúncia se torna mais difícil e como os agressores, sob a capa do progressismo, contam com uma larga impunidade. Enfim, agressores podem ser todos, mas uns podem ser mais que os outros.