Sim é um documento de trabalho, preliminar, aquele que tem estado a ser revelado com a lista dos grandes devedores incumpridores da CGD. Não é o relatório final. Mas estaremos a iludir-nos – ou estarão a iludir-nos? – se esperarmos diferenças substanciais no relatório final. Boa parte daquela lista de devedores, que não pagaram o que deviam à Caixa, já era conhecida e por isso não é nenhuma surpresa. Também já se sabia que as operações de crédito mais ruinosas estão concentradas no período que vai de 2005 a 2010. E através do processo da Operação Marquês, ficámos a saber, por via do caso Vale do Lobo, que se concedia financiamento sem respeitar os pareceres da direcção de risco e, mais grave ainda, sem qualquer justificação, como se o dinheiro pertencesse a quem estava a gerir o banco. O documento de trabalho da auditoria à CGD peca por defeito e não por excesso.
O que esta auditoria nos revela de novo é a quantidade de processos de concessão, de elevados montantes, de crédito que foram decididos desrespeitando as regras internas da CGD. Temos decisões de financiamento da administração que contrariaram o parecer desfavorável da área de risco da CGD sem qualquer justificação; que ignoraram as condições recomendadas pela área de risco; que não cumpriram a regra de ter uma garantia real que valesse pelo menos 120% do financiamento ou que avançaram para o financiamento sem o dossier de informação completo. O processo da Artlant, em Sines, ligado com o da La Seda em Espanha, o caso de Vale do Lobo e o financiamento para criar empresários ou banqueiros são três dos casos que ali estão identificados. Só não sabíamos que havia muito mais.
Este documento de trabalho revela-nos a elevada dimensão da tragédia que foi o processo de decisão de concessão de crédito, participações financeiras e investimentos estratégicos da CGD, especialmente nos anos de 2005 a 2010. Porque de resto peca por defeito.
As perdas são muito mais elevadas do que as identificadas e isso acontece porque a análise se encerrou em 2015, quando a Caixa ainda não tinha dado como perdidos muitos daqueles financiamentos porque, simplificadamente, não tinha ainda dinheiro para aumentar o capital que taparia aqueles “buracos”. Embora a auditoria tenha incidido sobre uma amostra de créditos, caso tivesse abrangido também o ano de 2016 teria chegado a valores mais elevados. No Relatório e Contas da CGD de 2016, quando se fez a “limpeza”, as perdas (imparidades) registadas atingem os 5,6 mil milhões de euros.
Além disso, o relatório preliminar da Ernst & Young não nos apresenta uma análise por projecto. Por exemplo, o caso da Artlant tem de ser forçosamente analisado em conjunto com a empresa catalã La Seda, onde a Caixa teve uma participação acionista e à qual concedeu também crédito. Quando se fazem as contas deste projecto, em conjunto, a estimativa, por baixo e sem acesso a toda a toda a informação, eleva as perdas da CGD a cerca de mil milhões de euros. O mesmo se pode dizer do que a CGD perdeu com a participação acionista no BCP, directamente e por via dos financiamentos que concedeu, entre eles a Joe Berardo.
É pois um erro desvalorizar a informação que agora chegou a público. O que aconteceu foi bastante mais grave, quer na dimensão das perdas quer nos processos que aos poucos se vai conhecendo. E os dados obtidos revelam-se ainda como importantes e relevantes porque já houve consequências para pelo menos dois ex-administradores da CGD. Norberto Rosa desistiu de integrar a administração do BCP depois de se ter arrastado o seu processo de validação de idoneidade no BCE. Também o Bison Bank – ex-Banif Investimento comprado pelo Bison Capital, com sede em Hong Kong – foi obrigado a retirar a sua proposta de nomear Pedro Cardoso – ex-administrador da CGD – como presidente, porque o BCE não o iria aprovar na sequência do que já conhece da auditoria à CGD.
Como é um erro elevar quase a valor supremo o segredo bancário. Temos de nos perguntar se o segredo bancário serve para proteger os clientes – e é para isso que devia servir – ou está a ser usado para proteger quem decidiu conceder créditos como se o dinheiro fosse seu, à revelia de regras de boa gestão e de guarda do dinheiro dos depositantes. Além disso, o segredo bancário não pode ser um valor absoluto, tem de ser um valor que cede quando estamos perante valores como a justiça. O que é mais importante? O segredo bancário ou o exercício da justiça e a actuação para que isto não se volte a repetir?
Os responsáveis políticos já tinham transmitido uma lamentável mensagem quando encerraram à pressa a Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e à Gestão do Banco, em Junho de 2017, sem esperarem pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça. A CGD, o Banco de Portugal e a CMVM tinham recorrido da decisão do Tribunal da Relação, que considerou que a lista dos grandes devedores que não pagavam devia ser entregue à comissão parlamentar. Como os deputados encerraram a comissão parlamentar, o Supremo arquivou o recurso.
Não podemos ficar com a ideia de que se não fosse o BCE nem sequer teríamos assistido às decisões que já foram tomadas. Não podemos ficar com a ideia de que se não fosse esta fuga de informação, tentar-se-ia que nada acontecesse. Quando se pede, agora, que a administração da CGD retire consequências da auditoria dever-se-ia, previamente, ter transmitido a mensagem política dessa prioridade – nomeadamente por via da comissão de inquérito. Esperava-se também que os deputados mostrassem que não há dois pesos e duas medidas, que não há uns que podem ficar a dever, sem que nada lhes aconteça, enquanto outros, com um pequeno crédito à habitação, quando comparado com os milhões que estão aqui em jogo, não podem falhar.
Perdida que está a comissão parlamentar de inquérito, os deputados e o Governo ainda podem fazer justiça, dando ao Ministério Público meios para que este processo da CGD não se perca nos meandros da justiça por via de prescrições. Ou teremos de pensar que a pouca justiça que se faz vem de fora e é administrativa, via BCE.
Hoje a CGD está a fazer o seu caminho de correcção do passado. O aumento de capital que foi obtido permitiu-lhe limpar as perdas e só se espera que ainda consiga recuperar alguns daqueles créditos. Com o tempo, o Estado, ou seja, os contribuintes em geral vão recuperar o dinheiro ali injectado, por via dos dividendos. O que não se vai recuperar tão cedo é a desigualdade que estas perdas geraram. Os clientes da CGD têm hoje um serviço pior do que tinham, o que é sentido especialmente pelas pessoas mais velhas; pagam mais comissões para terem conta na Caixa e em alguns sítios do país perderem a sua Caixa. É humano que se sintam revoltados e injustiçados.