Que a oligarquia socialista não entenda o professor Cavaco Silva, é o que se poderia esperar dela. Mas que muitos dos que aplaudiram o discurso de Cavaco Silva no Encontro Nacional dos Autarcas do PSD também não o tenham entendido, já é mais inquietante. Não, o antigo Presidente da República não resolveu simplesmente dar uma boleia ao presidente do PSD, mesmo que esse possa ter sido um dos efeitos secundários das suas palavras.

Para o Primeiro-Ministro, o professor Cavaco Silva vestiu a “camisola partidária”. Na cultura política de cinismo da oligarquia socialista, é o único tipo de camisola que existe. Mas no mundo de Cavaco Silva, existe outra camisola: a camisola do país. Foi essa que ele vestiu agora. Já era, aliás, a que ele vestia enquanto foi governante, quando, sem medo das ironias da classe letrada, celebrou a convergência da economia portuguesa com as economias da Europa mais rica, e as grandes expectativas que havia por volta de 1990. Não era apenas a satisfação de um político, mas o entusiasmo de uma geração que via finalmente Portugal sair da “cauda da Europa”. Cavaco Silva e a sua geração também sabiam o que isso significava. Não eram apenas lugares num ranking. Era a possibilidade de mudar de vida, de realizar aspirações, de que aliás as suas vidas e carreiras eram exemplo. Cavaco Silva, mesmo com as suas reticências sociais-democratas ao liberalismo, sempre soube que nenhuma outra política é mais eficaz a promover coesão e mobilidade social do que a que mantém uma economia aberta e dinâmica, como ele quis que fosse a economia portuguesa.

Para perceber Cavaco Silva, não basta, ao contrário do que se tem dito, lembrar os resultados do seu governo de 1985-1995. É preciso também lembrar a grande aposta no futuro do país, que foi a decisão de aderir à futura moeda única em 1992. Exprimiu a sua convicção de que seria possível criar riqueza em Portugal sem ser através de salários baixos, e de governar sem ser através de défice e de inflação. E é isto que explica o “intervencionismo” de Cavaco Silva. Trinta anos depois, vê o seu país substituído por outro, onde as expectativas baixaram, a divergência em relação à Europa passou a ser aceite, e a moeda única serve apenas para garantir a assistência do BCE a uma governação má e cara.

Seremos capazes de compreender a exasperação de quem tudo fez para que as coisas não fossem assim, e de quem talvez tenha pensado que nunca mais seriam assim? Não, a voz do professor Cavaco Silva não é a do aficionado de um partido cheio de vontade de o ver no governo: é a de um patriota exasperado pela decadência e empobrecimento de um país para quem ele desejou e previu outro futuro. Sim, escrevi “patriota”, e sem a ironia queirosiana da praxe. Aliás, também Eça de Queiroz teve as suas horas de patriotismo, como em 1890. Por favor, não confundam o patriotismo com a bacoquice oficial do “somos os melhores do mundo” em vigor no futebol e no turismo. O patriotismo é o cuidado com o estado do país, com a sua prosperidade e as suas instituições. O poder socialista gerou uma cultura anti-patriótica, de cinismo e de indiferença pelo bem público, de que o caso da TAP é exemplo, e que a Operação Tutti Frutti mostra ter alastrado numa classe política onde demasiada gente parece convertida ao mais primitivo extractivismo político. Perante tudo isto, há quem opte por se declarar “desiludido”. Essa desilusão, porém, significa mais vezes conformismo do que lucidez. O professor Cavaco Silva não se conformou. Como ele, precisamos de ter outra vez a ousadia de sermos patriotas, isto é, inconformistas.

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