A expressão “cerca sanitária” é uma das heranças que a pandemia do SARS-COV-2 deixará no nosso campo lexical. Ao abrigo do dinamismo que tanto caracteriza o desenvolvimento da nossa linguagem – reflexo de novas ideias e formas de pensar –, esta expressão estendeu-se ao nosso quotidiano político, por forma a designar uma conjugação de esforços, mais ou menos concertados, que permita blindar a nossa democracia da influência das propostas radicais do Chega. Talvez o termo ‘propostas’ seja excessivo para referir as ideias despejadas por André Ventura sem o mínimo fundamento e concretização das condições em que seriam aplicadas. A recente polémica da prisão perpétua é elucidativa desta leviandade, com Ventura a explicar que afinal defendia uma pena mitigada quando nada disto transparecia nos seus discursos inflamados e acicatadores.
As últimas eleições presidenciais e as mais recentes sondagens demonstram, apesar de tudo, que este tipo de retórica tem vindo a ganhar alguma tração. Não creio que seja tanto pelas ideias em si, mas mais pelo descontentamento crescente com vários casos e acontecimentos que têm minado a perceção da nossa qualidade democrática. A somar a isso, a falta de fulgor na oposição à governação de António Costa, apoiada por CDU e BE, poderá ter criado o sentimento de orfandade em algum eleitorado amplamente descontente com a maioria marcadamente de esquerda que vinha conduzindo os destinos de Portugal. Felizmente, neste último fator, parece haver agora a convicção crescente de que os partidos da direita – ou centro – tradicional, bem como a Iniciativa Liberal, constituem uma alternativa sólida e diferenciada com possibilidade real de disputar as eleições.
Perante a incerteza do resultado das legislativas, impunha-se que todos clarificassem o seu posicionamento e abertura ao diálogo no pós 30 de janeiro. De um modo geral, as forças com assento parlamentar aproveitaram para explicar com quem e quais as condições para alcançarem entendimentos de governação. Todas, à exceção de uma. O Partido Socialista preferiu refugiar-se num cenário altamente improvável de uma maioria absoluta para fugir à questão essencial: até onde estaria o PS disposto a ir para manter o extremismo – de direita – afastado do poder. António Costa, ao invés de manter os pés assentes na terra e demonstrar humildade democrática ao admitir viabilizar um governo do PSD caso este vencesse as eleições, preferiu apontar às estrelas sem que o foguetão socialista tivesse o combustível suficiente para lá chegar – talvez porque o imposto sobre os produtos petrolíferos não tenha permitido encher o depósito.
Esta postura poucochinho firme e democrática foi absolutamente cristalina no debate transmitido pela RTP1 que opôs o (ainda) primeiro-ministro a André Ventura. Numa discussão em que o nível foi baixo de parte a parte, António Costa aproveitou para capitalizar pontos quando aludiu a uma conhecida expressão da Guerra Civil Espanhola ao referir ao seu adversário que, com ele, “as suas ideias não passavam”. Até aí, tudo muito bem. Mas, quando João Adelino Faria, que moderava o debate, o questionou se estaria disponível para viabilizar um governo minoritário do PSD a fim de evitar a interferência do Chega, não foi capaz de ir além de uma resposta manifestamente insatisfatória: “eles que se entendam”. Nesse momento, António Costa perdeu uma oportunidade de dizer na cara de Ventura e a todos os portugueses que defenderia a nossa democracia da influência do populismo em toda a linha.
Esta falta de assertividade evidenciada por Costa levanta um ponto ainda mais preocupante: a aparente conveniência que o Partido Socialista encontra no Chega para bloquear entendimentos à sua direita e assim se perpetuar na governação. Para um Partido fundador do nosso regime democrático esperava-se um sentido de responsabilidade muito mais em linha com a sua condição. Todavia, parece prevalecer uma lógica de preservação do poder a todo o custo, escudada em posições ambíguas que mantenham um amplo menu de opções – aparentemente inconciliáveis – em aberto para depois pegar na que melhor se adequar, à semelhança do que sucedeu em 2015. Desta vez, António Costa quis mostrar a maioria absoluta como única solução possível de estabilidade ao mesmo tempo que assumia governar na mesma em minoria ‘a la Guterres’, fórmula muito mais volátil que os acordos escritos que dispensou em 2019.
De forma pouco surpreendente, esta falta de clareza do Partido Socialista parece estar a custar muito caro. Numas eleições para as quais partia como amplamente favorito, cresce a perceção de que a própria vitória está em causa. Não tenho dúvidas de que a intransigência do PS em assumir posições incómodas, mas firmes, se está a revelar fatal junto do eleitorado. Diz o nosso povo com a sua sapiência tão característica que “não se pode ter sol na eira e chuva no nabal”. Neste caso, não se pode querer mostrar uma imagem de defensor da democracia e não estar disposto a fazer tudo para a preservar. Por oposição, Rui Rio abriu corajosamente o jogo na abertura que demonstrou ao diálogo com PS caso ganhasse ou caso perdesse. Aquela que parecia ser uma posição ingénua revela-se agora um dos seus maiores trunfos. Já o Partido Socialista, que parecia gerir com mestria a cerca sanitária de geometria variável ao Chega, foi abafado pelas águas pantanosas para onde deixou cair os seus princípios.