No debate sobre o aborto nos EUA, alguns dos defensores de Roe vs Wade, a histórica decisão de 1973 do Supremo Tribunal de Justiça que tornou o aborto legal em todo o país e que está em vias de ser revertida, decidiram começar a adoptar, com o habitual apoio da máquina propagandística, outro tipo de terminologia para se referirem ao aborto. Os proponentes desta tendência são essencialmente Democratas que se situam mais ao centro, se é que este ainda existe neste país tão polarizado.

A Administração Biden é particularmente fã desta lógica. Raros têm sido os momentos em que o Presidente ou a Vice-Presidente usaram o termo “aborto”. Por exemplo, no comunicado que a Casa Branca emitiu em Janeiro por ocasião do aniversário de Roe vs Wade, não há uma única referência àquele  termo. Tudo se resume à “saúde reprodutiva” ou “direitos constitucionais”. Na questão do aborto, o mínimo que se pede a quem o suporta é que se seja honesto na linguagem pois a morte de uma vida humana inocente não é pouca coisa. No limite, é a forma que temos de prestar tributo à vida que é eliminada. Noutros cenários, acaso usamos o termo “faleceu” para quem foi brutalmente assassinado? Acaso John F. Kennedy faleceu em paz nos braços de Jacqueline?

Tudo isto é calculado, claro está. Nada em política, sobretudo vindo de dinossauros como Biden, é dito sem ter em conta o impacto nos eleitores. E se os mesmos são sensíveis demais para ouvir a verdade nua e crua, então que se corrompa a linguagem. Pouco importa se esta corresponde ou não à realidade; o que conta é agradar e impor a ideologia. Esta táctica em nada difere da estratégia de Putin quando usa o termo “operação militar especial” para se referir à invasão da Ucrânia.

Em Portugal temos algo do género com o uso do conceito “interrupção voluntária da gravidez”. Este eufemismo foi crucial para convencer muitos eleitores em 2007, aquando do segundo referendo ao aborto. Provavelmente pensaram que uma interrupção não fosse tão má como um aborto (são, de facto, conceitos bem distintos) e que ao ser voluntária a mulher estaria livre na sua escolha (o que em si parece óptimo). Mas eis que, imposta a lei, não só se devem ter apercebido que a gravidez não se interrompe, mas termina-se, sem possibilidade de retorno para a vida intra-uterina (em rigor, há uma pequeníssima percentagem de sobreviventes do aborto), como o abandono e a coerção são problemas bem reais. Quantas “IVGs” não seriam evitadas se o homem, a família ou mesmo os amigos não desertassem num momento tão crucial da vida da mulher ou, pior ainda, a forçassem a “resolver” o assunto?

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Tudo isto não passa de estratégias para apelar ao sentimento dos cidadãos, enaltecendo valores com os quais, em princípio, toda a gente concorda. Ainda que seja vaga e abrangente, quem é que não concorda com a autonomia individual? Quem é que não quer que uma decisão seja livre e voluntária? Quem é que deseja privar alguém de aceder a cuidados de saúde reprodutiva? E assim se vai enganando os menos atentos e convencendo os mais indecisos.

Quem não está nada satisfeito com isto são os Democratas mais progressistas e as organizações pró-aborto como a Planned Parenthood e a NARAL Pro-Choice America. A razão é simples: se o Presidente não está disposto a chamar as coisas pelos seus nomes é porque não está muito convencido daquilo que diz. Nisto, temos de lhes tirar o chapéu, pois ao menos são verdadeiros na linguagem. Estes Democratas e organizações não escondem o orgulho que têm na ideia de uma mulher ter controlo absoluto sobre o seu corpo. E não há maior manifestação de controlo do que poder decidir o destino de uma vida humana. É por isso que matar pode ser tão fascinante para quem não tem os valores alinhados. Claro que a maioria das mulheres que passam pelo drama do aborto são alheias a esta lógica (se não o são, a experiência talvez as transforme), mas não devem ser poucos os médicos que praticam abortos a pensar assim. Boa sorte para quando se encontrarem com Hipócrates.

Para terminar, não há como deixar de referir novamente o que está a acontecer com Roe vs Wade. Esta decisão sempre foi chamada de histórica por se considerar um avanço civilizacional a despenalização do aborto. Contudo, verdadeiramente histórico será o momento em que esta lei passar à história, passe a redundância. É o que é esperado quando o Supremo Tribunal se pronunciar em Junho sobre o caso Dobbs vs Jackson Women’s Health Organization. Aguardemos pacientemente.