No actual cenário de guerra, onde a cada momento vemos as peças do xadrez a mudar de posição, um artigo de opinião como este corre sérios riscos de estar desactualizado no momento em que é publicado. Prefiro correr esse risco do que a deixar de contribuir para o debate de ideias.

Desde o dia em que Vladimir Putin decidiu a infame invasão do país soberano e democrático que é a Ucrânia que pouco ou nada se ouve falar do primaz da Igreja Ortodoxa Russa, o Patriarca Cirilo de Moscovo. O seu silêncio é inaceitável. Sim, é verdade que emitiu um comunicado a apelar à paz, mas nunca chamou Putin à responsabilidade e muito menos usou termos como “invasão”, “guerra” ou “ataque”. Sabemos que num cenário de guerra é importante ser prudente, mas quando o óbvio está a acontecer à frente dos nossos olhos, não há como escapar a assumir uma posição mais clara de reprovação. Seria o mesmo que termos a Itália a invadir a Croácia e não ouvirmos uma palavra do Papa Francisco. A atitude do Patriarca pode, contudo, ser entendida à luz da relação que mantém com o seu chefe de Estado. Não é por acaso que alguns dos seus críticos o alcunham de “o acólito de Putin”.

Cirilo não estaria sozinho caso tivesse assumido uma posição mais firme contra a invasão da Ucrânia.  Na verdade, teria muito por onde se inspirar, a começar nos 141 países que votaram a favor da resolução da Assembleia das Nações Unidas a exigir à Rússia o fim imediato das operações militares na Ucrânia. Mas não era preciso ir tão longe. Dentro da própria Igreja Ortodoxa, há vários exemplos de condenação à “guerra de Putin”. Para o Patriarca Daniel, primaz da Igreja Ortodoxa Romena, a Rússia iniciou uma guerra contra um estado soberano e autónomo; o Patriarca Leão, primaz da Igreja Ortodoxa Finlandesa, condenou veementemente as acções militares da Rússia e disse não haver qualquer justificação para a guerra; o Arcebispo de Atenas, Jerónimo II, disse estar profundamente chocado com os horrores da guerra e o seu impacto na população (ao 12º dia da invasão, as Nações Unidas já haviam registado 474 mortes de civis, entre elas 29 crianças); o Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, expressou a sua “profunda tristeza pela flagrante violação da qualquer noção de direito internacional e legalidade”. A voz deste Patriarca é particularmente importante pois é considerado o primeiro entre iguais (primus inter pares), sendo o único a poder conferir a chamada autocefalia (independência) a igrejas ortodoxas nascentes (a sua influência, no entanto, não se compara à do Patriarca de Moscovo, que tem sob a sua alçada cerca de metade dos ortodoxos do mundo inteiro). A reacção mais inesperada veio, contudo, do Metropolita Onófrio. Já perceberemos porquê.

Há duas grandes divisões da Igreja Ortodoxa no país que Putin decidiu invadir: a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo, cujo primaz é o Metropolita Onófrio, e a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, liderada pelo Metropolita Epifânio. Os nomes parecem confundir-se, mas há diferenças relevantes. A primeira, apesar de gozar de uma substancial autonomia, está sob a jurisdição da Igreja Ortodoxa Russa (o mesmo é que dizer, do Patriarca Cirilo); a segunda é uma igreja independente cuja autocefalia foi reconhecida por Bartolomeu I em Janeiro de 2019. Os fiéis da primeira consideram-se ortodoxos russos; os da segunda, ortodoxos ucranianos. O Patriarca Cirilo nunca aprovou o reconhecimento da autocefalia pelo que desde aquela data está de relações cortadas com Bartolomeu I.

Ora, no mesmo dia em que Putin deu luz verde à invasão, o Metropolita Onófrio, ainda que submetido a Moscovo, não hesitou em chamar esta de uma “guerra fratricida”, travada entre dois povos irmãos que partilham uma história que remonta ao século X, altura em que se dá o Baptismo dos Rus’ no rio Dniepre, considerado um dos momentos inaugurais da cristianização dos povos eslavos que vieram a ocupar a região hoje compreendida pela Rússia, Bielorrúsia e Ucrânia. Onófrio vê nesta raíz comum a principal razão para apelidar a guerra de fratricida, mas para Cirilo, a mesma guerra poderá ter outra interpretação: uma oportunidade de voltar a unir os povos num mesmo “espaço espiritual”, para usar a propagandeada expressão de Putin. A Bielorrúsia não é um problema porque sempre foi a favor do regime czarista. Já o povo ucraniano foi ganhando uma identidade cultural e uma aproximação ao Ocidente que já não faz sentido recuperar o tal “espaço espiritual” que outrora uniu as três nações. O mais impressionante é que Putin age como se estivesse no tempo das Cruzadas e esta fosse uma guerra santa. Não só está no século XXI como a guerra não é santa, mas sangrenta.

Ainda que o modus operandi seja diferente, Cirilo e Putin parecem legitimar-se e justificar-se mutuamente, mas quando acordarem para a realidade (se acordarem), verão o rasto de destruição a que uma simples ideia pode conduzir. Os ideólogos são assim: vergam a realidade à ideia. Onde é que já vimos isto acontecer?

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