Por mais elevada que deva ser a nossa consideração por decisões emanadas de uma instituição como um Supremo Tribunal de um país, é bom lembrar que as leis humanas não são escritas na pedra. O precedente (stare decisis) que toda a lei origina é importante para a estabilidade da sua aplicação, mas isto não significa que não possa ser revista ou mesmo anulada, sobretudo quando o erro judicial é evidente e mesmo quando houve uma larga maioria dos juízes a suportá-la. O melhor exemplo na história dos Estados Unidos é o caso Dred Scott vs Sandford, de 1857, onde sete dos nove juízes do Supremo decidiram que nenhuma pessoa de ascendência africana, incluindo o escravo Dred Scott e a sua família, tinha direito a reclamar cidadania americana e a usufruir da protecção da lei. Sabemos como tudo terminou: Guerra Civil passados quatro anos e, na sequência desta, abolição da escravatura com a 13ª emenda à Constituição. Foi um Republicano, Abraham Lincoln (1809–1865), o responsável por este desfecho. As semelhanças entre este caso e o agora muito badalado Roe vs Wade são gritantes.

Primeiro, em Roe vs Wade foram também sete os juízes a decidir a favor da legalização do aborto até à fase da viabilidade do feto, na altura considerada as 28 semanas (actualmente nas 24). Depois dessa fase, os Estados já teriam toda a legitimidade em implementar leis restritivas do aborto, só que na prática tal nunca aconteceu pois basta o médico invocar perigo para a saúde mental da mulher que o aborto continua a poder ser praticado até ao fim da gravidez. O que o partido Democrata agora queria com o Women’s Health Protection Act era precisamente passar a lei federal, isto é, a todo o país, o direito ao aborto sem quaisquer restrições. Nunca uma lei tão radical foi proposta por uma sociedade dita civilizada. Felizmente, chumbou.

Segundo, o estatuto do feto em Roe vs Wade não está muito longe do estatuto do escravo em Dred Scott vs Sandford. Só foi possível decidir o que se decidiu porque se retirou da equação a humanidade do feto e do escravo. Este até podia ser humano, mas claramente de segunda categoria. Quanto àquele, nem estatuto tem; é pouco mais que coisa. Ora, a humanidade do feto não depende da minha perspectiva; é um dado objectivo, que a ciência há muito reconhece. Claro que dão jeito os jogos à volta deste conceito, mas é preciso uma grande desonestidade intelectual para submeter o facto à ideologia. O geneticista francês Jérôme Lejeune (1926–1994), sobre quem já escrevi neste espaço, chegou a dizer que a fertilização in vitro (com a qual discordava, note-se), é a maior prova laboratorial que o feto é humano. Depois de implantado o embrião e correndo tudo sem percalços, ninguém duvida que dali não vai sair uma nova criatura humana.

Por último temos a pressão a que os juízes foram sujeitos. Em Dred Scott vs Sandford, a pressão veio do próprio Presidente dos EUA, o democrata James Buchanan (1791–1868). No discurso da tomada de posse (a conhecida Inauguração), Buchanan referiu-se, para espanto de muitos, ao caso do escravo Dred Scott (que estava ainda a ser discutido no tribunal) como aquele que ia resolver de uma vez por todas o problema da escravatura. Buchanan deve ter pensado que com a intervenção do Supremo, os Estados do norte, que eram pela abolição, deixariam em paz os Estados do sul, que eram por se manter a escravatura. Tudo regressaria ao normal e toda a gente ficava em paz (menos os escravos, claro está). Nunca tal se ouviu falar de um Presidente pressionar o Supremo desta maneira tão directa, mas o certo é que deu resultado e o tribunal lá deliberou, poucos dias depois da Inauguração, a favor de não atribuir privilégios de cidadania às pessoas de ascendência africana.

Com Roe vs Wade, a pressão veio por outras vias, conforme relata o insuspeito médico ginecologista Bernard Nathanson (1926–2011). Num artigo que escreveu para o New England Journal of Medicine  (NEJM) em 1974, dá-nos uma ideia das tácticas empregues pelos defensores do direito ao aborto. Na descrição do modus operandi da organização que ajudou a fundar, a National Association for Repeal of Abortion Laws, hoje conhecida como NARAL Pro-Choice America, Nathanson refere o uso de todos os recursos disponíveis para os grupos de acção política, como distribuição de panfletos, manifestações públicas, exploração dos media e pressão nas principais câmaras legislativas. Também no livro que escreveu com Richard Ostling, Aborting America, reconhece a atenção que a NARAL dava ao drama individual bem como a total falsidade das estatísticas que divulgava. Umas quantas mortes por ano (que é sempre muito, note-se) rapidamente se transformavam por artes mágicas em 5000 a 10000 mortes. Estes números eram tão úteis à propaganda que a NARAL nunca os corrigiu.

Passados quase 50 anos começamos a olhar para Roe vs Wade como agora olhamos para Dred Scott vs Sandford, isto é, como um monumental erro judicial.

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