Terminei por estes dias a biografia de Jérôme Lejeune (1926–1994), o médico geneticista francês que descobriu a causa da síndrome de Down. Logo nas primeiras páginas, a biógrafa Aude Dugast conta como Jérôme e seu irmão Phillipe fizeram um ano de “homeschooling” por causa do início da II Guerra Mundial (França e Inglaterra declararam guerra à Alemanha precisamente no início do ano escolar, em Setembro de 1939). Passados mais de 80 anos, muitos pais viram-se novamente obrigados a manter os filhos em casa, não por o seu país estar em guerra, mas por causa de um simples vírus, que nem criatura é. As semelhanças entre as duas histórias, contudo, ficam-se por aqui.

Os primeiros elementos a considerar em relação aos nossos dias são, claro está, a obsessão pela tecnologia, que ao tempo de Lejeune era obviamente inexistente, bem como um currículo escolar que despreza por completo a importância das humanidades na formação do aluno. Durante o seu ano de confinamento, Jérôme mergulhou na biblioteca do pai, onde pôde estudar grego e latim e ler os grandes clássicos da literatura francesa e ocidental. Foi assim que, aos 10 anos de idade, descobriu Balzac e Pascal. A influência destes e muitos outros intelectuais cristãos é mais do que notória na vida e pensamento do futuro geneticista. Já o insuspeito Albert Einstein (1879-1955) afirmava, numa entrevista ao New York Times, que o cientista sem formação humanística mais depressa se “assemelha a um cão bem treinado do que a uma pessoa harmoniosamente desenvolvida.” O médico português Abel Salazar (1889-1946) disse algo parecido: “um médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe”. Pergunto-me o que diriam Einstein e Salazar sobre o agora na moda STEM (acrónimo em inglês para “science, technology, engineering and mathematics”), que há muito tomou conta do currículo.

Durante a pandemia, não só os alunos foram muito mal “treinados” como o seu desenvolvimento foi bastante desarmonioso, conforme já inúmeros estudos evidenciaram. Ainda recentemente, um artigo no Expresso dá-nos conta dos efeitos no cérebro decorrentes do uso contínuo do “smartphone”, que não é muito diferente dos aparelhos usados na escola pública hoje em dia. Nele podemos ler que o “smartphone” está a levar a um “decréscimo da capacidade de concentração” e a um “processo de degradação cognitiva”. Suspeito que, à semelhança da indústria tabaqueira, a indústria tecnológica saiba exactamente o que se está a passar, mas claro que não tem nenhum interesse em divulgar a informação de que é detentora. Tivessem as escolas, em coordenação com os pais, optado por facultar aos alunos fichas de trabalho (em papel!) e uns quantos livros do cânone da literatura ocidental, em lugar de os submeter a intermináveis horas em frente a um ecrã e à tortura das aulas por Zoom, e talvez agora tivéssemos alunos mais cultos, menos deprimidos e mais concentrados naquilo que estão a fazer.

Em relação ao cânone da literatura ocidental, tal como proposto por Harold Bloom, temos sempre ideia que as obras listadas são demasiado difíceis para um público mais jovem, mas depois da publicação de Before Austen Comes Aesop, de Cheri Blomquist, não há mais desculpas. Blomquist fez uma adaptação daquele cânone aos mais novos, propondo aquilo que chama “The Children’s Great Books”. De entre as dezenas de obras listadas, divididas por época, temos as Fábulas de Esopo (escritas há mais de 2500 anos), os contos de Robin dos Bosques (registados pela primeira vez por volta de 1500), As Viagens de Gulliver (Jonathan Swift, 1726), As Aventuras de Huckleberry Finn (Mark Twain, 1885) ou O Hobbit (J. R. R. Tolkien, 1937). A cultura e a criatividade ganham-se é a ler boa literatura, não à frente de um ecrã iludido com as aplicações ditas educativas.

Depois temos o regresso à escola. Nesta matéria, as escolas privadas foram exemplares já que em Setembro de 2020 muitas já estavam novamente a abrir portas para receber os alunos no ensino presencial. Não admira a migração de alunos do público para o privado durante a pandemia. Até hoje, não há qualquer evidência de que esta abordagem tenha resultado em maior número de casos por COVID-19 no sistema privado. No sistema público foi o desastre que sabemos. Não só a tão propagandeada “Diversidade, Equidade e Inclusão” como que se evaporou (quem mais sofreu com o confinamento foram precisamente os alunos de minorias afro-americanas e latinas, cujos pais não tinham qualquer hipótese de trabalhar a partir de casa e que, por isso mesmo, foram incapazes de acompanhar os filhos) como os sindicatos dos professores ainda dificultou quanto pôde o regresso à escola (afinal, a educação dos alunos não está em primeiro lugar, até é bem capaz de estar em último). Pelo meio, tivemos também uns pais histéricos a não quererem os filhos na escola enquanto não se exterminassem todos os vírus, como se tal fosse possível e como se esses pais não fossem os mesmos a poder dar-se ao luxo de trabalhar a partir de casa. Resultado: nalguns casos, o regresso ao ensino presencial só se deu passado mais de 18 meses depois de decretado o confinamento. Não há criança que aguente.

Estas foram algumas das vicissitudes do ensino público nos EUA durante a pandemia. Para país mais avançado do mundo, não serve de exemplo.

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