Toda a guerra começa com uma ideia. A de Putin é tão simplesmente a de voltar a ter um império.

O valor de uma ideia afere-se pelas suas consequências. Não interessa se parece boa ou má, popular ou não, velha ou nova. É pelos resultados que a temos de avaliar. A ideia de Putin, ainda que interessantíssima para uns quantos intelectuais e ideólogos, chumba redondamente quando consideramos os seus efeitos. O aparente interesse da ideia passa a ser secundário. Absoluta e moralmente secundário, como escreveu Miguel Esteves Cardoso.

Há outro tipo de guerras ideológicas a decorrer no mundo. Podem não deixar um rasto de morte, destruição e miséria, mas não deixam de conduzir a uma profunda perturbação do que está, objectivamente, estabelecido na natureza. Um dos melhores exemplos é a guerra contra a realidade binária em que toda a humanidade assenta. Não é uma guerra dos sexos, mas contra os sexos.

Esta guerra começa no momento em que se faz do género uma nova criatura e o mesmo deixa de corresponder ao sexo. Tem vida própria. É verdade que o conceito inicial era de que o género fosse expressão dos papéis diferenciados que homem e mulher assumem na sociedade, daí se dizer que é uma construção social, mas rapidamente evoluiu para uma Hidra de Lerna, ao ponto de nem sequer haver consenso quanto ao número de géneros que existe. Se não é o sexo a determinar o género, então o que é? O que os intelectuais e ideólogos desta área militantemente querem é que seja a percepção mental daquilo que eu acho que sou a determiná-lo.

A identidade é um conceito curioso pois resulta de um delicado equilíbrio entre características inatas e características adquiridas. O sexo e a cor da pele são características inatas e, por isso, objectivas: existem independentemente da percepção que possa ter delas. O clube de futebol ou a filiação partidária são características adquiridas e, por isso, subjectivas: a sua existência depende das minhas preferências e das escolhas que vou fazendo ao longo da vida. Pode não agradar a todos, mas isto é a solução ideal pois precisamos da solidez e objectividade das características inatas para nos permitirmos viver a aventura da subjectividade das características adquiridas. É como ter o melhor dos dois mundos. Afinal, a natureza é nossa amiga.

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As actuais teorias do género vieram baralhar tudo isto e quem mais sofre, claro está, é quem está a passar pelo processo de construção da identidade, já de si complexo e delicado. Dizer a uma criança que sofre de disforia de género que pode ser aquilo que bem entender, mesmo que tal implique vir a alterar profundamente o seu corpo (que, à partida, é são), é submeter aquilo que é objectivo, como o sexo, ao que é subjectivo, como a percepção mental que temos de nós. Por outras palavras, é submeter a realidade à ideia. Isto não é muito diferente do que defendem os intelectuais e ideólogos do imaginário império de Putin, que também teimam em vergar a realidade à ideia. Mais uma vez, é pelas consequências que devemos avaliar uma ideia. No caso da teoria do género, a mutilação de partes perfeitamente sãs do corpo numa tentativa de o conformar a uma diferente percepção mental que a pessoa poderá ter de si, é sinal mais do que evidente para afirmar que a teoria está errada.

O sexo, tal como a cor da pele, não se muda. É uma característica biológica, inata, objectiva. Por vezes pode demorar tempo até aceitarmos completamente a natureza que nos foi dada. Afinal, não fomos nós que a escolhemos. É um pouco como ter irmãos, que também temos de aprender a amar e aceitar. O contrário disto é fazer da nossa natureza o inimigo a abater. Nunca mais há paz. O alívio temporário que uma “mudança de sexo” poderá trazer não tem correspondência a longo prazo para muitos que passaram pelo processo, como numerosos estudos evidenciam. Talvez por isso haja quem “destransicione” e queira recuperar a natureza que um dia rejeitou.

A respeito da cor da pele, que nos leva à muito debatida questão da raça, a história de Rachel Dolezal coloca exactamente o mesmo tipo de questões, mas em relação à identidade de raça, não de género. É caso para perguntar: por que é que Dolezal, nascida de pais brancos, mas que se identifica como afro-americana, não goza também do mesmo tempo de antena e protecção das pessoas que se identificam como transgénero? É que a lógica subjacente – a de que nos podemos auto-definir independentemente do que a realidade objectiva do nosso corpo diz – é exactamente a mesma. Com Dolezal, estaremos no início de uma nova ideologia, neste caso da raça? Será que para além dos pronomes vamos precisar também de referir a cor da pele para nos apresentarmos aos outros? Será que nos vamos arriscar também a ser cancelados e anulados por activistas da raça tal como já somos por activistas do género?

Estas são as guerras ideológicas que temos. No caso da Rússia, sabemos bem de que lado da história ficar. Quanto às outras, seria bom colocarmos de lado os estados de alma e começar a avaliar objetivamente os seus efeitos. Só assim não acabaremos como os intelectuais e ideólogos de Putin.