Ainda hoje, precisamente 60 anos depois, não temos explicações seguras para justificar o início e o fim da crise nuclear em Cuba, que pôs em confronto directo os Estados Unidos da América e a União Soviética em 1962.
Para além de toda a literatura publicada, incluindo as memórias do secretário-geral soviético Nikita Khrushchev e as transcrições comentadas das gravações das conversas do presidente John Kennedy com o seu círculo restrito na Casa Branca, muitas dúvidas subsistem sobre as motivações da União Soviética. No início da crise, Kennedy diz candidamente aos líderes do Congresso: “Não estamos convencidos de que os soviéticos tenham a certeza sobre o curso de acção que vão seguir … Não sabemos mesmo.”.
O presidente dos Estados Unidos continuava sem certezas sobre as causas do comportamento de Khrushchev, mesmo depois da carta de 28 de Outubro de 1962 que selou o acordo e levou a União Soviética a começar a retirar as ogivas nucleares e outro tipo de material militar que havia instalado em Cuba.
As intermináveis reuniões e conversas entre o núcleo duro que Kennedy convocou, os contactos bilaterais, os emissários, a diplomacia, as informações militares, tudo isso serviu para guiar o presidente norte-americano até à resolução, com enorme êxito, de uma das mais graves crises globais que enfrentámos, quase sem saber – mas, ainda assim, ficaram muitas perguntas no ar sobre as reais motivações da União Soviética.
Estava Nikita Khrushchev realmente disposto a ir até ao fim e usar as armas nucleares de que dispunha, caso os Estados Unidos atacassem ou invadissem Cuba? Ou se bloqueassem os seus navios, mesmo os comerciais, a caminho de Cuba? Porquê o interesse num país comunista tão distante do seu raio de acção, quando os verdadeiros confrontos da Guerra Fria, à data, se situavam na consolidação do leste da Europa e especialmente em Berlim?
Que se saiba, Kennedy não voltou a repetir, no final da crise de 1962, aquilo que tinha dito no princípio, (citação repetida) “Não sabemos mesmo”, mas pode bem tê-lo feito, mais em privado, sem as bobines a gravar.
Quanto à tomada de decisões do lado soviético, não há gravações, claro, mas há alguma informação retirada de memórias e outros escritos.
No auge da Guerra Fria, com a questão da construção do Muro e do enclave ocidental de Berlim no centro de todos os diferendos, Khrushchev mantinha, naturalmente, uma enorme desconfiança em relação ao comportamento dos Estados Unidos e da NATO. Agravada pela instalação de mísseis nucleares na Turquia, apesar de obsoletos.
Khrushchev tinha ficado muito bem impressionado com o presidente Eisenhower em 1955, em Genebra. Principalmente com a sua firmeza. Seis anos mais tarde, no primeiro encontro com o recém-eleito presidente Kennedy, em Viena, a análise de Khrushchev levou-o, instintivamente, a considerar a flexibilidade como a característica capital do seu congénere.
O instinto constituía a base do processo de decisão de Khrushchev, mais do que a razão ou o calculismo. Sem nenhuma experiência internacional e sem qualquer formação académica, tinha desempenhado apenas cargos partidários antes de suceder a Stalin. Tomava sozinho todas as decisões políticas, evitando o aconselhamento. Apenas alguns colaboradores mais próximos eram chamados, raramente, mas sempre com receio dos seus colegas no Politburo.
Khrushchev tinha assistido a todas as purgas internas do seu antecessor, tanto nos órgãos políticos, como nos militares e, por isso, pressentia obsessivamente um golpe interno que o viesse a afastar do poder a qualquer momento. Provavelmente através de meios não tão violentos, como as execuções sumárias, mas sempre, no mínimo, com o degredo no horizonte. Desconfiando de todos os seus, seria também natural que desconfiasse absolutamente dos seus inimigos externos.
Este processo solitário de tomada de decisões surge também com a decisão de fornecer mísseis convencionais a Cuba tomada pelo governo soviético, em Abril de 1962, a pedido de Fidel Castro. Poucas semanas depois, já em Maio, sem qualquer alteração das circunstâncias, nem nenhum novo pedido por parte de Cuba, Khrushchev resolve inexplicavelmente, em modo solitário, aumentar a ajuda com o envio de forças militares e de mísseis nucleares. Começando assim o conflito, que os Estados Unidos só identificaram alguns meses depois, através de voos aéreos e de informações dos serviços de inteligência.
O desfecho da crise dos mísseis em Cuba, no final de Outubro de 1962, após intenso trabalho da Casa Branca acabou também por destruir a análise de Khrushchev sobre a flexibilidade de Kennedy, como o próprio terá reconhecido. Mas o processo solitário de decisão manteve-se. Pelo menos, até Khrushchev ser afastado pelos seus pares em 1964, como sempre temeu, pelo facto, entre outros, de as suas decisões terem provocado o mais grave risco de guerra nuclear global conhecido até à data.
Precisamente 60 anos depois, a invasão da Ucrânia pela Rússia coloca-nos de novo perante uma ameaça de guerra nuclear, pondo a tese da dissuasão de quarentena. Quase tudo é diferente, desta vez, em especial a destruição selvagem de um país e da sua população pela Rússia, com armas convencionais, mas com audíveis ameaças de uso do seu arsenal nuclear.
Já não estamos numa fase de negociação preventiva, pois a invasão da Ucrânia aconteceu há mais de dois meses. Os contactos que estão certamente a ser feitos entre as partes em conflito, através dos canais habituais, não estão a tentar encontrar soluções para a manutenção da paz. Estão a tentar pôr termo à guerra e salvar vidas. O que é completamente diferente. Se isso for alcançado, teremos de voltar às negociações para a manutenção da paz, a reconstrução da Ucrânia e de tudo o resto que ficou em crise.
E o que é que pode não ser diferente do que se passou em 1962? Começando pelo mais óbvio: o processo solitário de decisão de Khrushchev tem muitas semelhanças com a governação de Vladimir Putin.
As decisões são tomadas pelo próprio Putin, por vezes em directo, através dos media, na presença de chefes militares, aparentemente destituídos de qualquer intervenção no processo que não seja a obediência cega. E mostrando medo e desorientação, o que não é muito adequado para quem foi instruído para iniciar uma guerra.
Putin toma decisões por instinto? Prefere o instinto ao calculismo? Pelos resultados catastróficos verificados até agora, se houve calculismo, está disfarçado de puro instinto. E Putin não parece ser um jogador de xadrez. Consulta os membros dos órgãos políticos? E os militares? Também parece que não, ou, pelo menos, não os consulta muitas vezes.
Não há muita informação inquestionável, no meio da propaganda, mas a acreditar no que se consegue filtrar, Putin é um homem só, afastado das luzes, não gosta de discutir as suas decisões e voltou aos meios violentos de aniquilação dos seus opositores internos. A propósito deste regresso à criminalidade, Alexei Navalny, o seu mais poderoso rival, depois de saber que tinha sido envenenado e ainda antes de ser preso, fez este comentário: “Isso é tão estúpido. Se querem matar alguém, porque é que não lhe dão simplesmente um tiro?”
Do outro lado, nesta crise mundial, não existe formalmente, até agora, um confronto directo com os Estados Unidos, mas temos mais intervenientes activos: a Ucrânia, directamente atingida, e os países da União Europeia e o Reino Unido. Tem havido algum consenso no armamento da Ucrânia e na aplicação de sanções à Rússia e a cidadãos alegadamente comprometidos com o regime, mas também uma grande confusão quando se toca no tema da energia, principalmente no fornecimento de gás pela Rússia à Europa. Com a Alemanha a liderar a renitência em deixar de importar combustíveis fósseis da Rússia, que é considerara a medida mais eficaz para cortar o financiamento da guerra de Putin.
De notar aqui que a Alemanha não surpreende nunca. Com a tendência natural para assumir um papel de liderança em tudo, como na União Europeia, às vezes com relutância, é certo, para dirigir economicamente o velho continente, também acaba por liderar no resto, até no que podem ser opções pouco inteligentes. E quanto ao gás russo, já lá vão quase vinte anos de decisões erradas e perigosas, de Schroeder a Merkel. Talvez o novo chanceler Olaf Scholz tenha uma iluminação e nos ponha no caminho certo.
Quanto aos Estados Unidos, para além do que se vê, não sabemos o que está a ser feito. Pelo menos aqui, não há processos solitários de decisão e o presidente Joe Biden está acompanhado, felizmente, pela sua equipa e pelo Pentágono.
Agora já não há gravações na Casa Branca, mas os memos das reuniões, conversas telefónicas e teleconferências, poderão esclarecer muito do que não sabemos e está a acontecer. Daqui a 30 ou 40 anos, talvez.
Para ver e ouvir enquanto lê este artigo: Cena final de “One Flew Over the Cuckoo’s Nest”, de Milos Forman