Na passada sexta-feira, um juiz federal de Seattle suspendeu, à escala nacional, a famosa decisão do Presidente Trump de proibir a entrada no país de cidadãos de sete países. O Presidente criticou a suspensão judicial, mas esta foi imediatamente implementada durante a noite de sexta-feira e a manhã de sábado. Está agora em curso, naturalmente, uma renhida batalha política e jurídica — no âmbito da Constituição.

Uma semana antes, no Reino Unido, também um tribunal, neste caso o Supremo Tribunal, ordenara que a decisão sobre a saída da União Europeia, aprovada em referendo popular em Junho passado, tinha de ser confirmada pelo Parlamento. Por indicação do tribunal, a primeira votação parlamentar teve lugar na passada quarta-feira. O “Brexit” foi aprovado por 498 votos a favor e 114 contra. A lei passará agora às comissões parlamentares — onde existem centenas de propostas de emendas na especialidade — e em princípio voltará ao plenário a 8 de Fevereiro. Depois disso, terá ainda de ser votada na Câmara dos Lordes, também de acordo com as tradições constitucionais do Reino Unido.

Entretanto, na sexta-feira, o Parlamento português votou uma série de moções cruzadas condenando várias políticas do Presidente Trump. Nenhuma, no entanto, obteve unanimidade, embora as moções do PS, do PSD e do CDS tenham sido aprovadas. Curiosamente, estas foram aprovadas com os votos destes três partidos, que tradicionalmente eram considerados do “arco constitucional-pluralista”. O conceito foi usado por Mário Soares ao longo de quarenta anos, mas é agora muito contestado por jovens líderes socialistas (cujos nomes de momento me escapam) que são entusiastas da “geringonça” e da chamada “aliança natural das esquerdas”.

Aqueles são três exemplos importantes — e muito saudáveis — de como a democracia liberal está a funcionar: nos EUA, no Reino Unido e… em Portugal. E o ponto principal a sublinhar aqui é que em nenhum caso houve unanimidade. Para colocar as coisas em termos mais concretos na memória nacional: em nenhum caso se verificou o mito da “União Nacional” do doutor Salazar, nem o do “Povo unido jamais será vencido” do PREC, ou das chamadas “democracias populares”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A verdade é que a experiência da democracia — a democracia realmente existente nos países que souberam preservá-la há mais tempo — nunca esteve associada à ideia de vontade única de ninguém: nem do povo, nem da nação, nem, por maioria de razão, de qualquer líder infalível falando em nome do povo ou da nação.

A ideia de “vontade única” ou de “vontade geral” do povo ou da nação foi infelizmente celebrizada por Jean-Jacques Rousseau, um visionário radical e bastante provinciano que raramente viveu em democracia. Pelo contrário, James Madison, pai-fundador da democracia americana (e herdeiro, ainda que talvez não expresso, da tradição constitucional pluralista britânica), deixou muito clara uma visão de democracia oposta à da “vontade geral” de Rousseau, em palavras inesquecíveis:

“Se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre o governo. Ao criar um governo que será administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside aqui: devemos, em primeiro lugar, capacitar o governo para controlar os governados, e, em seguida, obrigá-lo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo é sem dúvida o controlo primário sobre o governo; mas a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções adicionais.”

Entre estas célebres “precauções adicionais”, James Madison incluiu os famosos “checks and balances”, freios e contra-pesos, a divisão e separação de poderes, o controlo mútuo entre eles. Chegou a escrever que, para evitar a concentração de poderes, (em nome da “vontade geral” do povo) devem ser dados, “àqueles que administram cada departamento, os meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir á invasão dos outros. […] A ambição deve ser usada para contrabalançar a ambição.”

Foi exactamente isto que aconteceu na semana passada nos EUA, no Reino Unido e… no Parlamento português. Em suma, a democracia liberal, ou constitucional, ou pluralista está a funcionar. A vontade da maioria é respeitada, mas é limitada por freios e contrapesos constitucionais.

Esta perspectiva tranquila e civilizada foi aliás muito meritoriamente sublinhada num debate televisivo de rara elevação na passada quarta-feira, na RTP 3. A primeira edição do novo programa mensal “Fronteiras XXI” — promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos — contou com a presença do Presidente da República e de dois jovens politólogos, João Pereira Coutinho e Mónica Brito Vieira, que seria agradável podermos ouvir mais vezes na televisão.

PS: Apesar de tudo, receio que, nesta avaliação optimista, uma magna preocupação tenha sido omitida. Charles Moore (biógrafo autorizado de Margaret Thatcher) observou no Telegraph de Londres que o Presidente Trump aparece sempre em público sem abotoar o casaco, inclusive na tomada de posse. A magna questão que subiste, e que receio possa ter escapado aos pais-fundadores da república americana, é esta: a quem, constitucionalmente, compete dizer ao Presidente para abotoar o casaco?