Não me lembro de muitos sonhos que eu tive quando menina. Não sonhava um cachorrinho de estimação, nem nunca sonhei com roupas bonitas, nem mesmo com um vestido de noiva. Mas me lembro bem, com uns 14 anos, de conhecer uma mulher de trinta e poucos anos, de cabelos compridos e sorriso largo, que tinha acabado de defender seu doutorado numa Universidade Federal no nordeste brasileiro. Ali, finalmente, eu estabeleci um sonho: eu queria aquilo. Queria ser doutora. Queria ser uma doutora como ela, sem precisar ser séria demais, nem qualquer outra coisa que não fosse natural em mim.
Entrei no mestrado com 22 anos e no doutorado (ou doutoramento, em português de Portugal) com 27. Saí da minha zona de conforto, mudei minha área de pesquisa, mudei de país. Doutorado só faz sentido se for difícil. Não é mesmo? É. Mas, depois de entrar no curso, percebi que a coisa era mais difícil do que parecia quando vista de fora. E quando o monstro começa a se agigantar, só há duas possibilidades: desistir ou permanecer.
Nunca senti uma solidão tão intensa quanto aquela que vivi no doutorado. No início, quando há aulas e colegas, é apenas um curso difícil. Mas quando apagam-se as luzes e começa a redação da tese, tudo muda. E, embora no mestrado isso também exista, no doutorado o mergulho é muito mais profundo, as águas são muito mais frias e o medo é muito maior. Não há ninguém, absolutamente ninguém com você lá no fundo. Por melhor que seja seu orientador (como era meu caso – minha gratidão infinita ao Professor Doutor Pedro Infante Mota), por melhor que seja sua família, por melhores que sejam seus colegas. Você está sozinho.
E está sozinho, principalmente, porque se sua tese de doutorado for efetivamente uma tese de doutorado, chegará um momento no qual você já não terá ninguém para te dizer qual o caminho exato. Faltará alguém que esteja tão a par do assunto quanto você. Podem opinar nos assuntos satélites, mas não haverá praticamente ninguém que possa debater o tema com o mesmo grau de envolvimento que você. Suas únicas companhias serão meia dúzia de autores cujo rosto você imagina e que provavelmente nem falam seu idioma, nem sonham que você exista.
Paralelamente a isso, um medo constante: o medo de ser inútil. Medo de estar redigindo páginas e mais páginas que não servirão para nada, além das críticas dos membros do júri. Para que estou fazendo isso? Por que estou fazendo isso? Essas páginas e mais páginas terão alguma capacidade de fazer diferença na história da humanidade – mesmo que mínima – ou sou obrigada a me contentar com a diferença que ela fará – apenas e tão somente – na minha vida? Não se sabe. E é preciso aceitar isso.
O doutorado é um desafio constante de saúde mental. Não se desesperar, não deprimir, não perder as esperanças. É um constante questionamento de “por que eu entrei nessa?”, de “será que deveria estar fazendo algo mais útil com o meu tempo?”, de “será que deveria estar fazendo algo mais útil com o meu dinheiro?”. Não é só uma tese a ser escrita, são milhares de fantasmas para enfrentar diariamente – somados à falta de apoio público – e por vezes privado também.
Mas, de alguma maneira, alguns chegam ao dia da defesa, como me aconteceu na última quinta-feira. Seis anos de trabalho resumidos em algumas horas. Tudo ou nada. Todos os fantasmas se levantam ao mesmo tempo. Todas as inseguranças invadem uma cabeça que deveria estar povoada apenas por uma tese. E então você é questionado, confrontado, arguido. E defende-se. Defende sua tese como uma felina defende um filhote, ainda que de forma mais tímida. Se coloca, se posiciona, lembra de coisas que nem imaginava lembrar. No fim das contas, você se lembra dos tantos anos de estudo, se lembra dos domingos sacrificados, das madrugadas em frente ao computador, dos sábados em meio aos livros. E algo em você diz: eu posso fazer isso. E então você vai lá e faz. E o júri vê. E delibera. E, por fim, te diz: bem vinda. Você é uma doutora.