Em Janeiro voltei a ler Javier Marías. Fi-lo com Berta Isla, depois da densidade de O Teu Rosto Amanhã se ter devidamente esvaído do meu espírito. Marías é dos melhores escritores espanhóis vivos, uma escrita terna e suave que nos desarma para de seguida, e sem pré-aviso, nos atirar de frente contra uma profundidade e violência psicológica que não nos deixa incólumes. Através de Berta Isla, Marías retrata-nos um homem, Tomás Nevinson, que um incidente ocorrido quando estudava em Oxford muda por completo a sua vida. Melhor, força a que a vida que contara ter não se concretize, mas que outra, a par dessa, decorra em paralelo até que nenhuma das duas reste. Nevinson não foi quem quisera ser, quem a mulher (Berta Isla) pensava que ele era ou seria ou podia vir a ser, mas outro que ninguém (nem ele próprio) conhecia ou julgara sequer poder existir. De acordo com Marías, Nevinson meditava pouco sobre si mas ficamos sem saber se esse facto teve alguma relevância no sucedido. Berta Isla foi publicado pela Alfaguara e tem já uma continuação com o surpreendente nome de Tomás Nevinson. Mas o meu ponto aqui são as pessoas que podiam ser o que são e se tornam no que não são. A frase parece complicada, mas o fenómeno é mais frequente do que parece.

A verdade é que não nos conhecemos nem sabemos quem somos nem sequer o que cá estamos a fazer. Este é um dos dilemas da vida, mais que a morte, e que, tal como esta, lhe dá sentido. Apesar de tudo lá vamos andando nessa busca sem fim. O que sufoca Tomás Nevinson é que essa pesquisa não existe nele porque as suas duas vidas se tornaram numa mentira ao ponto de cada uma impedir o normal desenvolvimento da outra. A mentira, não a dúvida, é o que nos liquida. A mentira faz muitos não serem o que podiam ser, terem o trabalho que desejariam, a vida pessoal que mais as preenche, a capacidade de renovação, reinvenção, o que as infunde nessa procura. A mentira faz com que as pessoas deixem de caminhar, leva a que digam ou façam exatamente o contrário daquilo em que acreditam. Permite que os que se dizem a favor da paz apoiem quem começa a guerra. Dá lugar à hipocrisia e ao desenvolvimento de um argumentário analítico, frio; desumano, não fosse a humanidade parte integrante do que julgávamos ter deixado para trás em 1945 e 1989. A mentira fecha-nos os olhos aos avisos que atempadamente nos deram o alerta: a intervenção de Putin na Geórgia, a invasão da Crimeia, os oligarcas, a dependência do gás russo ou até a crescente dívida pública dos estados europeus. A mentira leva-nos a só falar de Covid durante dois anos para, repentinamente, o assunto ser arrumado numa gaveta e só discutirmos guerra como se mais nada houvesse; como se vivêssemos numa emergência permanente em que a primeira qualidade a cair é o nosso discernimento. A capacidade de sermos o que somos.

Porque a mentira pode ser intencional ou não desejada; explícita ou implícita; planeada ou inesperada. Uma dualidade atroz que não é só descrita por Javier Marías em prosa. Num poema, Fernando Pessoa já nos disse que:

“(…)
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.”

Nem é preciso que nos detenhamos em textos escritos há pouco tempo. Estamos na Quaresma. Sejamos ou não cristãos, católicos, crentes ou não crentes, a Quaresma é um período de tempo que o cristianismo colocou à disposição das pessoas para que estas pensem no que são, não no que querem ser, mas naquilo em que se podem tornar. É um percurso de libertação, de saída de um deserto e caminhada até uma chegada. Até que consigamos ser o que somos mesmo que não saibamos o que isso seja. As decisões que tomamos são nossas desde que tomadas em consciência, sendo que a não consciência da tomada de uma posição é já de si uma decisão consciente. Nevinson julga ter sido vítima de uma fatalidade até que descobre que não, que o livre arbítrio nunca o largou, esteve ao seu lado em cada um dos dias da sua vida (das suas duas vidas) por muito elevado que fosse o preço da escolha.

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