Disseram-me no outro dia: lá estás tu a bater no António Costa.
Se há papel onde não me revejo é no do malhador Augusto Santos Silva agora em «gélida» versão proto-presidenciável. Então, nesta crise política propícia a tal actividade e depois dos comentários feitos desde ontem por todos os analistas políticos, jornalistas e comentadores, não há muito o que acrescentar: António Costa reforçou o seu poder como líder do PS e o poder da sua maioria quando não aceitou a demissão de João Galamba pretendida por Marcelo Rebelo de Sousa, uma demissão, se em regular funcionamento democrático, obrigatória.
As suas intenções, passe a surpresa que causou, parecem inequívocas e são as referidas por todos: provocar a queda do governo e assim terminar a comissão parlamentar de inquérito à gestão da TAP prevenindo embaraços futuros e garantindo eleições antecipadas enquanto as pode ainda ganhar. A dissolução do parlamento não nos convém enquanto não ouvirmos na CPI muito do que tem de ser sabido; enquanto não se apuram rigorosamente as responsabilidades pela convocação do SIS e a legalidade da sua intervenção; as responsabilidades de João Galamba na sua mais recente cowboiada. Pum. Pum. Estás morto.
Mas quanto à acusação que me foi feita, devo reconhecer, é verdadeira. Incompleta, porém. Onde consecutiva e consistentemente tenho «batido» é na indiferença perante a erosão e as perdas democráticas. No seu favorecimento. Na clara evidência dessas perdas, naquilo que as promove, em quem as promove, como, e porque razões. Do marxismo cultural à alt-right. E quando, e se, a credibilidade institucional é corroída também no nosso país através do intriguismo político para manutenção do poder, ou seja, na menor forma de estar na política, tenho-o apontado, sem dúvida. Do Chega ao Bloco de Esquerda com passagem obrigatória por este ano de maioria absoluta desbaratada em incontáveis vergonhas públicas quando há um país para reformar e meios financeiros para o fazer. Não obstante, vivemos um ciclo de empobrecimento onde a cada dia desconvergimos não só da UE mas do país que poderíamos ser.
Nos corredores palacianos da política portuguesa caem os ideais que Péricles enunciou no público elogio fúnebre dos atenienses mortos em combate contra Esparta, numa manhã do Inverno de 431 a.C., depois das primeiras batalhas. E no mundo, da Sérvia de Aleksandar Vucic, alinhado com Putin e Orban, da sua linda Belgrado em polvorosa com o julgamento de Belivuk e as revelações de um criminoso braço armado ao serviço do Estado, ao basismo trumpista, vemos aquela apologia periclesiana da democracia em pedaços e substituída pela mesma crítica que, vorazes cinquenta anos depois daquela Guerra do Peloponeso, Platão lhe fez na República: anarquia onde Péricles via liberdade; manipulação do povo pelas elites em vez de progressão para a igualdade; tolerância ao mal no lugar do respeito pela diferença apesar da censura moral; promoção dos privilegiados e dos a eles associados a despeito da suas incompetências e da falta de virtudes morais.
Usar os vícios da democracia para a destruir é o exacto oposto de reforçar as instituições democráticas para reduzir os vícios da democracia.
Em caso de dúvida, pergunte-se: esta decisão política favorece o quê? A democracia e o reforço das suas instituições? A crítica à democracia? A corrupção das instituições democráticas? A credibilidade institucional? A autocracia? Faça-se o exercício com o caso Belivuk. Ou, em versão nacional, com o caso Galamba. Com a intervenção do SIS.
E depois há o resto. E o resto é quase tudo o que importa. É a vida fora do tabuleiro de xadrez da pequena política portuguesa.
No mercado, ao domingo, a mesma mulher velha, sozinha, ronda as bancadas do peixe com o saco de plástico muito dobradinho, cheio de vincos, linhas finas de uso e arrumo, com as moedas contadas. Depois de ver e rever cada bancada em esforçados passos lentos, esta abstracta mulher estatística como os números sem valor nos corredores do poder indemnizatório, meio milhão, três milhões, compra um carapau lírio, o luxo semanal do peixe fresco. No outro dia disse, não sei se para si mesma, se para a rapariga que a atendia: às vezes choro, às vezes rezo.
Há outros milhões em Portugal: são quatro milhões, os pobres à espera de Péricles.
A autora escreve segundo a antiga ortografia