É uma panela de pressão que começa a chiar com demasiado vigor. As sociedades europeias parecem hoje viver num ambiente de guerra civil não bélica que, apesar de não ter surgido agora, se avolumou com a acção terrorista do Hamas a 7 de Outubro, em Israel. Aquilo a que temos assistido nas ruas da Europa, disfarçado de pacifismo, toca já uma zona que entre nós era comummente aceite como impenetrável. Essa zona é o anti-semitismo.

É certo que existirão variações em tudo isto. Haverá, em muitos casos, uma origem não anti-semita na predisposição política, mas é ali que desagua todo um outro radicalismo que subsiste.

Esse radicalismo não é novo, de resto. O que temos visto, ao longo das últimas décadas, desde que o terrorismo e a pulsão sanguinária das esquerdas revolucionárias e terceiro-mundistas baixaram as armas, tem sido a prossecução da mesmíssima violência por outros meios. De facto, com a queda do muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e o facto de a democracia liberal e o capitalismo terem ficado, praticamente, “sozinhos em casa”, o esquerdismo teve de procurar outras fórmulas de combater a democracia, a sociedade burguesa, as liberdades individuais e a economia de mercado. E fê-lo, depois de décadas de terror, recorrendo a causas aparentemente inofensivas e relativamente consensuais. Uma dessas causas, entre muitas outras, foi o ambientalismo, resgatado pelos revolucionários que tinham compreendido que as sociedades ocidentais não padeciam de simpatias ideológicas e políticas pelos assassinatos, pelos atentados à bomba ou pelos sequestros.

Foi um discurso de violência que subsistiu através de outros mecanismos. Já não apelando à sociedade sem classes ou à morte de empresários, mas recorrendo a outro tipo de causas mais aceitáveis pela saudável mansidão burguesa. Uma delas, mais recente, é o direito à habitação, que há dias serviu para o Bloco de Esquerda sugerir a deportação por razões políticas de todos aqueles que o partido decida apelidar de “fascistas” ou “racistas”, sem que alguém se tivesse alarmado com a ideia. Enfim, nada do que esta esquerda sugere como proposta política terá acolhimento eleitoral relevante, é certo, mas o seu ruído vai dominando e condicionando todo o debate público, muitas vezes através de intelectuais, políticos, artistas e comentadores, idiotas úteis do esquerdismo terceiro-mundista, ainda pejados de romantismo revolucionário inútil, e de um certo tipo de jornalismo onde esse esquerdismo ainda tem um considerável número de simpatizantes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta agenda anti-ocidental, anti-democrática, totalitária e revolucionária ganhou novo fôlego com o conflito entre o Hamas e Israel. Ao contrário da unidade das lideranças europeias na defesa de Israel perante um ataque de uma organização terrorista que defende, precisamente, o fim do Estado de Israel, regressou ao palco mediático uma agenda de terceiro-mundo que, escudando-se no alegado pacifismo e na defesa da existência de um Estado palestiniano, esconde, afinal, uma evidência: é a existência de uma democracia pró-ocidental naquela região que incomoda, é o fim de Israel que se oculta como ambição real por detrás de outros desígnios políticos mais aceitáveis. Uma sonsice, no fundo.

É por isso que, entre nós, muitos social-democratas e europeístas de esquerda, realmente favoráveis à solução dos dois Estados, conscientes de que Israel cometeu, ao longo dos anos, os seus erros, mas cuja existência é merecedora de total defesa dentro do quadro do direito internacional, tem sido brutalmente vilipendiada pela esquerda revolucionária. Personalidades como Rui Tavares, Fernanda Câncio ou Inês Pedrosa têm sentido na pele essa fúria. É como se a esquerda democrática acabasse de ser confrontada ao espelho e compreendesse, por uma vez, que há uma outra esquerda que não é compatível consigo – sobretudo depois de, nos últimos anos, termos sido inundados com a ideia de que a esquerda radical não existe e que à esquerda do PS há apenas um horizonte de social-democracia.

As sociedades europeias viciaram-se na ideia da paz perpétua. Imaginam, ainda hoje, que o resto do mundo ambiciona ser a Europa, e talvez lhes custe compreender e aceitar que essa é uma ideia não só falsa, mas perigosa, na medida em que nos expõe as fraquezas. Com duas guerras à porta, a última coisa que nos faltava era este clima intelectual e mediático de guerra civil provocado por uma esquerda sonora cuja cabeça não saiu dos anos 70, das Brigadas Revolucionárias, da ETA ou mesmo das FP-25 de Abril.

Há uns anos, assinei uma carta que defendia que no espaço à direita havia linhas intransponíveis. No fundo, que a necessária polarização esquerda-direita, em democracia, deve ser feita num bloco de moderação, no campo da democracia e das liberdades. É altura de a esquerda traçar as suas linhas vermelhas. Se quer sobreviver, a esquerda democrática tem de regressar ao ponto em que já esteve: na luta pelas liberdades contra as cabeças totalitárias e anti-democráticas do seu lado do tabuleiro político. Precisa, no fundo, de regressar ao Mário Soares da década de 1970, e de abandonar o cinismo tacticista de António Costa e o romantismo revolucionário do pedronunismo do futuro. Sim, a esquerda precisa de edificar a sua própria cerca sanitária.