1 Aldo Moro tinha sido primeiro-ministro de Itália entre 1963 e 1968 e entre 1974 e 1976, e fora o grande responsável pela assinatura do «compromisso histórico», com Enrico Berlinguer, líder dos comunistas italianos, numa tentativa de trazer o Partido Comunista para dentro do sistema democrático e de, com a Democracia Cristã, fazerem frente à crise económica e ao avançar dos movimentos terroristas. Era, por isso, ainda um símbolo político quando foi raptado por um comando das Brigadas Vermelhas, a 16 de Março de 1978.

No rapto foram assassinados o motorista do automóvel onde seguia Moro e os membros da equipa de segurança que o acompanhava, tendo o antigo chefe do Governo italiano sido encarcerado num episódio que durou 55 dias e que terminou com a sua morte, a tiro, e o corpo deitado na bagageira de um carro, colocado simbolicamente à mesma distância das sedes dos partidos Comunista e da Democracia Cristã – a 9 de Maio, há exactamente 44 anos. O sequestro fora levado a cabo numa altura em que as Brigadas Vermelhas procuravam chantagear o poder político tendo em vista a libertação do que entendiam ser presos políticos, isto é, de camaradas seus que a justiça italiana tinha detido, mas não estaria inteiramente desligado do «compromisso histórico», momento de concórdia inaceitável para os radicalismos de então.

Durante o cativeiro, que só terminaria com um «julgamento revolucionário» que, naturalmente, deliberou pela sua morte, a sociedade italiana foi confrontada com uma imensidão de questões éticas e morais, numa discussão pública que chegou a envolver o Papa Paulo VI, que escreveu às Brigadas Vermelhas pedindo a libertação de Moro, e que levou o Governo italiano, liderado pela Democracia Cristã de Moro, a optar por não negociar com os terroristas.

Num caso de alguma forma semelhante ao de Adolfo Suárez aquando do golpe de 23 de Fevereiro, em Espanha, embora este com um final mais feliz, Moro acabaria por ser traído pelo seu próprio partido, pelos aliados internacionais, pelos outros partidos italianos, que não o tentaram de facto salvar. O antigo Primeiro-ministro, professor universitário, grande penalista, exemplar praticante do pluralismo, da moderação e do centrismo consensualista, disposto a conter paixões ideológicas por algo que entendia ser superior à sua circunstância, acabou brutalmente morto num tempo em que as diferenças eram tidas como inconciliáveis, num tempo em que o adversário político era um inimigo cuja destruição era a única solução possível. Foi, como escreveu numa carta à sua mulher, vítima de uma sanção que recaiu sobre a sua mansidão e a sua moderação.

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2 No dia do assassinato de Aldo Moro o Parlamento português debruçava-se sobre um voto de congratulação pela celebração do 8.º centenário do mosteiro de Alcobaça, apresentado pelo deputado do PSD Gonçalves Sapinho, quando o presidente da Assembleia da República interrompeu os trabalhos para informar os deputados do que acabara de suceder em Itália. Vasco da Gama Fernandes recorda imediatamente o «homem extraordinariamente inteligente», de «larga dimensão europeia», alerta para a «máfia tentacular que não perdoa aos homens que defendem a liberdade e que desejam um regime de democracia», e recorda as ameaças de morte e de rapto que aparentemente também recebia.

O deputado Olívio França, do PSD, aderia «com a mais profunda emoção» às palavras do presidente do Parlamento, repudiando o «brutal atentado por parte de uma associação tenebrosa que nega o direito de viver aos que porventura não estão em conformidade com as suas ideias». O deputado Francisco Lucas Pires, do CDS, falava de um «crime contra a Humanidade», equiparava-o aos julgados em Nuremberga, e anunciava a sua esperança quanto à capacidade de se encontrarem «os remédios imanentes para o crescendo de violência e de terror que por toda a parte um pouco, na Europa, se propagam». Salgado Zenha, do PS, manifestava também o seu pesar e a sua consternação, denunciando o «terrorismo político» como aquele que «tem sempre como finalidade última destruir a própria convivência democrática». Zenha proclamava: «Nós não temos de nos censurar uns aos outros por ocuparmos posições ideológicas diversas ou por termos programas sociais e económicos diversos. O modo fundamental como nos deveremos criticar é pela utilização dos meios democráticos», e manifestava-se favorável à criação de «medidas repressivas» de aplicação indispensável para proteger a democracia, uma vez que esta não podia ser «confundida com qualquer permissividade total sob o pretexto de termos vivido cinquenta anos em ditadura, sendo possível agora ser-se fascista ao contrário». Curiosamente, poucos anos depois, Zenha, já não enquanto deputado, mas como advogado, diria coisas muito diferentes a propósito da sua defesa de líderes políticos do projecto das FP25 de Abril.

Também o PCP, pela voz do deputado Lino Lima, se mostrava emocionado com o «acto brutal» praticado, repudiando-o «veementemente». Mas anunciava desde logo que Moro, que tinha sido, afinal, «vítima de uma criminosa operação das forças do imperialismo e da reacção», salientando, porém, que «os assassinos de Aldo Moro não [tinham] qualquer ideal». E o deputado Acácio Barreiros, da UDP (uma das forças que deu origem ao actual Bloco de Esquerda), proclamava que a notícia do assassínio merecia «algumas palavras de repúdio, mas também algumas palavras de serenidade e de vigilância». Isto porque, para a UDP, aquela «acção bárbara nada [tinha] a ver com a luta das forças progressistas e com a luta pela modificação da Humanidade», mas salientava que «a UDP não [era] contra a violência»: «Nós somos contra a violência reaccionária. (…) Da mesma forma que fomos sempre contra a violência da ditadura portuguesa contra os povos irmãos das colónias, mas a favor da violência revolucionária dos povos irmãos das colónias contra a agressão colonial fascista». Ainda assim, Barreiros fazia notar que a acção das Brigadas Vermelhas nada tinha que ver com este tipo de violência aparentemente defensável, mas não deixava de aproveitar a oportunidade para alertar para repudiar determinados factos relacionados com os processos judiciais de que eram alvos os terroristas dos Baader-Meinhof, na Alemanha.

3 Tempos depois, a UDP juntava-se à OUT, ao MES, ao PRP, entre outras pequenas agremiações de extrema-esquerda, para fundar a FUP – o braço político do Projecto Global, de que eram braço armado as Forças Populares 25 de Abril. Enfim, o resto da história é, julgo, mais ou menos conhecida.

Nos dias seguintes, a imprensa portuguesa debruçava-se sobre o que se passara em Itália. E, sem que a lógica o explicasse, a morte de Aldo Moro, como PCP e UDP já tinham deixado claro no Parlamento, deixava de ser um crime exclusivamente imputável à organização terrorista de extrema-esquerda que o tinha efectivamente raptado e assassinado, mas do imperialismo, da reacção, do fascismo ou mesmo do próprio Aldo Moro.

Numa das primeiras aparições de Marcello Caetano enquanto chefe do Governo, uma senhora era entrevistada pela RTP e dava o seu parecer: «Este Salazar é mais simpático do que o outro». Ao fim de 44 anos, e bem vistas as coisas, posso arriscar que a esquerda radical dos nossos dias fez o mesmo: a maquilhagem e os métodos suavizaram, mas está lá tudo na mesma. Talvez com excepção do PCP – a quem, apesar de tudo, admiro a decência de não disfarçar as suas indecências. Sempre é preferível.