«Os povos europeus, no curso do último século, ouviram de vários lados que deve haver paz: a Santa Aliança era a paz; o Império francês de Napoleão III era a paz; depois ouvimos, durante a guerra: a democracia é a paz; ouvimos: a Sociedade das Nações é a paz; e ouvimos agora: a garantia do status quo é a paz. Mas se o status quo não for já ele mesmo a paz, a sua garantia será algo pior que uma guerra, será a legalização de um insuportável estado intermédio entre guerra e paz em que quem for poderoso politicamente toma a quem for fraco não apenas a vida, mas também o seu direito e a sua honra.»
Carl Schmitt. Der Status quo und der Friede (1925) in Positionen und Begriffe, p. 47.

«Um homem armado só com uma faca pode decidir que um urso rondando a floresta é um perigo tolerável, na medida em que a alternativa – caçar o urso só com uma faca – é mais arriscado do que ficar quieto e esperar que o urso nunca ataque. O mesmo homem armado com uma espingarda provavelmente faria um cálculo diferente do que constitui um risco tolerável. […] Esta psicologia humana perfeitamente normal traçou um fosso entre os Estados Unidos e a Europa.»
Robert Kagan. Of Paradise and Power (2004), p. 31.

Há cerca de cem anos, com o fim da Primeira Guerra Mundial e a constituição da Sociedade das Nações, surgia a ideia de uma nova ordem mundial já não baseada no equilíbrio de poder entre potências soberanas, representação que dominara as relações europeias desde a Paz de Westfália de 1648. Desfeitos os impérios centrais na Europa, erguendo-se dos seus escombros novos países e nacionalismos, surgindo refugiados e apátridas, os europeus pareciam abraçar uma nova doutrina, baseada na ideia da «paz perpétua» do Abade de Saint Pierre que tanto inspirara Rousseau e Kant. Esta, gestada na Europa das Luzes e transferida para a América, era agora devolvida aos europeus por Woodrow Wilson, Presidente da nova potência vencedora. Por isso, pela mão do Secretário de Estado norte-americano Frank B. Kellogg e do Ministro francês Aristide Briand, os Estados Unidos estabeleciam em Paris, em 1928, um novo princípio para a ordem internacional. Doravante, a guerra seria banida como meio aceitável para dirimir contendas entre Estados. Até então tinha sido reconhecido aos soberanos europeus um jus ad bellum, um direito de fazer a guerra (desde que esta fosse regrada; «en forme», como dizia Vattel no século XVIII). Agora, a guerra passaria a ser um crime de que a política teria de prescindir como recurso. A única guerra legítima seria a defensiva, no que se abria a porta a uma defesa do status quo, da paz e da humanidade contra a própria guerra.

Naturalmente, na Europa, a assinatura do Pacto Kellogg-Briand não demorou muito a despertar o problema de saber quem poderia falar em nome da paz e da humanidade. Quem decidiria o que seria de facto guerra ou apenas uma «operação especial», uma «defesa preventiva» ou mesmo uma «protecção da paz» operada com meios militares? Quem determinaria tais nomes e as representações subjacentes? Na Alemanha da República de Weimar, humilhada pelas potências vencedoras, um jurista tão brilhante quanto controverso, Carl Schmitt, punha a questão de forma cristalina. Se um Estado tivesse o direito (ou o poder que lhe dá direito) de falar em nome da paz e da humanidade, intervindo militarmente em sua defesa, tal possibilidade abriria paradoxalmente a possibilidade da mais terrível das guerras. Tratar-se-ia então de um conflito que uma propaganda maniqueísta apresentaria como uma luta entre o bem e o mal e em que o nome «humanidade» seria monopolizado por uma das partes para a deixar de reconhecer à outra, desprezada como desumana ou inumana. Um inimigo, escrevia Schmitt, «não deixa de ser homem»; a humanidade, portanto, não poderia fazer guerras porque não tem inimigos,  «pelo menos não neste planeta».

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A Segunda Guerra Mundial confirmou o diagnóstico de Schmitt. A guerra em que o inimigo aparecia como um criminoso inumano conduziu às piores atrocidades, desde os campos de extermínio e o gulag à devastação de cidades e ao lançamento da bomba atómica. E o clima que se seguiu no pós-guerra manteve o mesmo maniqueísmo. Duas superpotências que se consideravam a si mesmas autorizadas a intervir planetariamente em nome da «humanidade», do «bem» e da «justiça» estavam agora face a face. De um lado, os Estados Unidos e a sua consciência de si como líderes de uma aliança defensora do «mundo livre». Do outro, a tirania soviética que, nesses anos conturbados, contava com a prestimosa colaboração de grande parte da intelectualidade ocidental para se legitimar como representante da «humanidade» na sua aspiração à «emancipação», à «revolução» e ao «socialismo». O carácter gélido da Guerra Fria, o freio que a manteve arrefecida, brotou apenas da dissuasão nuclear.

Quando a União Soviética se dissolveu, em 1991, emergiu no «mundo livre» a narrativa de que se chegara ao «fim da história» (para usar a expressão que Francis Fukuyama tomara de empréstimo a Hegel lido por Alexandre Kojève). A Europa pós-moderna imaginou-se então um estádio final do progresso humano onde se prescindiria da própria política. Anunciava-se um «paraíso» cosmopolita infinitamente alargável onde caberiam todas as narrativas e visões do mundo mas não seriam possíveis relações de inimizade entre elas. Só que atrás do «paraíso», como se apressaram a advertir neoconservadores norte-americanos como Robert Kagan, estava o «poder». E «poder» significava para eles a força capaz de garantir o status quo que a expressão «the West and the Rest» consagrava. A partir dele, o planeta dividir-se-ia entre a área delimitada e segura do «Ocidente demoliberal», imune à violência sob a tutela da única superpotência sobrevivente da Guerra Fria, e o espaço anómico de um «resto» vigiado, controlado e exposto à possibilidade de intervenção dessa mesma superpotência; com a complacência, activa, a contragosto ou simplesmente resignada, dos seus protegidos.

O que se seguiu é ainda uma memória recente. Ao contrário do que se passara no século anterior, iniciado apenas em 1918, o século XXI começou a horas (ou com poucos meses de atraso) e trouxe de regresso a história. O ataque terrorista às Torres Gémeas de Nova Iorque, a 11 de setembro de 2001, trouxe uma mensagem que os ocidentais, embalados na sua existência pós-histórica, não quiseram interpretar: a de que a imunidade do espaço que habitavam não era afinal ilimitada. Procurando ignorá-la, o Ocidente respondeu trocando qualidade por quantidade. Se o espaço ocidental não poderia ser absolutamente imune, pelo menos o seu ilimitado reforço quantitativo, a sua expansão indefinida, poderia garantir uma ilusão de imunidade. Nas primeiras duas décadas do novo século, do Afeganistão ao Iraque, da Líbia à Síria, os ocidentais veriam o seu humanismo descredibilizado por intervenções militares agressivas invariavelmente anunciadas como «defesas da humanidade», «libertação de populações oprimidas» ou «operações de paz». E assistiriam também, no mesmo contexto, ao alargamento das fronteiras da NATO a Leste, em direcção à Rússia.

Do outro lado, a Rússia, pela sua geografia, história e cultura, pela sua tradição religiosa e multiplicidade étnica, não era um Estado. Era e é, na sua forma política, um Império. A própria palavra russa traduzível por Estado – gosudarstvo(государство) – alude a um senhor e ao «grande espaço» pelo qual se estende o seu domínio. A ideia política do «grande espaço» tem uma história sinuosa, que perpassa por fenómenos muito distintos e vai muito além da Rússia. Perpassa pela concepção da Doutrina Monroe de 1823, pela qual os Estados Unidos se assumiram como potência hegemónica na América, culminando na Guerra hispano-americana de 1898 e na colonização cultural de todo o espaço americano, até ao conceito alemão de Reich no centro da Europa do século XX. Seria uma discussão longa a sua relação com o presente. No essencial, porém, uma coisa é certa: ela caracteriza-se pela contraposição a um mundo unipolar, organizado em torno de uma potência única capaz de intervir unilateralmente, sem limitações, em todo o espaço planetário. Esta ideia é, por isso, na sua essência, incompatível com o status quo imunitário em que o «paraíso» ocidental se imaginou viver.

É na ideia do «grande espaço» que está a origem das horas trágicas vividas hoje na Europa. Alçando-se a uma espécie de representante da ideia de «grande espaço», a Rússia mostrou-se disposta a lutar por ela. E fê-lo depois de o «paraíso» ocidental se ter procurado alargar indefinidamente para leste sob o pressuposto ilusório de que já não lhe seria necessário lutar por nada. Em tempos recentes, é certo, houve no Ocidente tentativas para pensar para além das ilusões. A prudente política externa de Trump; o respeito e as relações económicas e culturais com a Rússia que caracterizaram políticos europeus de maior dimensão, como Merkel ou Órban; a necessidade de uma confrontação da União Europeia com os seus limites após o Brexit – tudo isso parecia instar a um renovado realismo político que conduzisse a Europa para além das ilusões. Infelizmente, porém, a ilusão de um paraíso imunitário regressou com a tão celebrada vitória de Biden e o anúncio de que a América estaria de volta. Só que agora à pomposa proclamação «America is back», e ao encorajamento dado aos ucranianos para se juntarem à NATO, seguia-se uma debandada em pânico do Afeganistão e a manifestação de que as ilusões não são mais do que isso.

O choque da Europa com as consequências humanas da invasão da Ucrânia, e o seu espanto com a bravura da resistência ucraniana, são compreensíveis. Mas a cobertura mediática desta guerra não decorre, naturalmente, apenas da indignação e da admiração. Resulta sobretudo de esta invasão confrontar a Europa com a sua própria impotência e representar para o «paraíso» ocidental o fim das ilusões em que se habituou a viver. Implicará ela, como resposta, aceitar definitivamente o fim dos sonhos e projectos europeus de «paz perpétua»? Penso que sim. Mas, se o for, trata-se de sacrificar a «paz perpétua» pela paz possível. Sair do «paraíso» e entrar na vida real implica deixar de ver a vida por um ecrã e aceitá-la na sua condição afectada pelo tempo, pelo mal e pela morte. Significará isso também aceitar que vivemos num mundo onde nem todos somos amigos? Alguns responderão que, numa perspectiva humanista e cristã, somos todos irmãos. Mas a fraternidade é outra coisa e não se presta a relações políticas. No mundo político em que vivemos, fora da ilusão paradisíaca ocidental, não há só amigos. É por isso que a paz não é o status quo de um estádio definitivo, mas uma conquista quotidiana e uma tarefa sempre inacabada. Compreendê-lo é aceitar onde e com quem vivemos. É saber articular proximidades mas também distâncias. E é também deixar a histeria fora da política e compreender que esta implica a arte difícil e precária de respeitar, viver e coexistir com os inimigos. Afinal de contas, não é para coexistir com amigos que precisamos dela.