Foi-me dado esta semana o privilégio de me juntar ao João Francisco Gomes e ao Ricardo Araújo Pereira no lançamento do livro que publicaram, a partir de conversas acerca de religião. Chama-se “O que é que eu estou aqui a fazer?” É uma bela pergunta que encaixa numa história memorável em que o humorista, num gesto de sinceridade, obteve talvez as primeiras gargalhadas colectivas da sua vida ao apresentar a dúvida a um dos padres da sua escola, quando era miúdo. Uma das vantagens que o Ricardo tem sobre a geração anterior de cómicos portugueses é a sua abertura ao assunto de Deus. Ainda que eu e a minha geração devamos muito ao Herman, o seu genuíno desinteresse público pela religião sempre foi desinspirador.

Para que a conversa fluísse entre nós os três no lançamento, o João sugeriu algumas perguntas. A primeira foi se tinha resposta para a pergunta do título do livro. Sei que hoje as pessoas tidas por inteligentes dizem só querer fazer perguntas e não cometer a arrogância de oferecer respostas (escrevi um texto sobre o assunto aqui no Observador chamado “Por que não acredito assim tanto em perguntadores”), mas, sinceramente, acho que sim, que tenho uma resposta para a pergunta “o que é que estou aqui a fazer?” Porque tenho fé em Jesus, acredito que integro um circuito cósmico de glória que é dada a Deus, o criador disto tudo. Nada nesta glória é fácil, mas o que nela é custoso não anula a sua existência.

Outra pergunta era se Jesus também tinha alguma prática de humorista e se havia mecanismos de comédia no evangelho. Sim, creio que há humor em Jesus. Basta lembrar uma passagem do Sermão do Monte que sempre me fez rir, quando o Senhor pergunta “qual dentre vós é o homem que, se porventura o filho lhe pedir pão, lhe dará pedra? Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma cobra? Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?” Diria que é um humor com espaço para o absurdo, típico da velha pedagogia rabínica. Ainda assim, receio que parte do interesse que temos em encontrar humor na Bíblia se deva hoje a qualidades que já canonizámos em nós e que, num suposto gesto de simpatia, estendemos condescendentemente aos outros. Qualquer época o faz. Para mim que sou crente, melhor do que a Bíblia ser boa porque lhe acho humor, é a Bíblia ser boa independentemente do humor que lhe acho.

O João questionou também se é possível construir um quadro de valores sólido fora da religião. É uma boa pergunta que, sinceramente, não me parece respondida de um modo satisfatório fora dos contornos da ficção. Todas as propostas de valores não-subjectivos além do reconhecimento da existência de Deus como a base de uma moral transcendente continuam a parecer-me insuficientes, intelectual e empiricamente. Não acho que as pessoas que não crêem em Deus não podem viver existências moralmente superiores às dos crentes e conheço até muitos casos assim. Mas essa capacidade existe por conta do Deus em quem não crêem e contra a falta de fé que nele declaram.

O João perguntou ainda se faz bem aos crentes ouvir mais os ateus. Crente que é crente sabe que o melhor ateu que conhece é ele mesmo, porque não há fé que não seja testada pela dúvida e as dúvidas mais sinceras que um crente conhece não são as dos outros mas as suas. Esta é a ironia: quando ouço o cepticismo do Ricardo Araújo Pereira sinto que o meu é mais autêntico. Talvez seja por isso que vou afirmando que preciso mais de fé do que ele.

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