Às vezes, é desesperante: parece que Marcelo Rebelo de Sousa tem de explicar tudo muito devagarinho para que os outros políticos entendam. Em outubro de 2023, com antecipação pedagógica, o Presidente da República avisou que o país corria o risco de entrar num período de “mini-ciclos governativos” potencialmente perigosos para o regime. Há dias, alertou, com ligeira irritação, que, caso seja chumbado o primeiro Orçamento do novo governo, temos “crise”. Aliás: temos “crise política”. Mais: temos “crise política e económica”. E, finalmente, Marcelo esclareceu, com crescente agitação, que, se houver mini-ciclos governativos, se houver Orçamento chumbado, se houver crise política e se houver crise económica, então haverá também, em 2026, um Presidente da República vindo de fora do “sistema” — que é uma forma indireta, mas clara, de dizer que haverá um Presidente de farda chamado Henrique Gouveia e Melo.
Em Portugal, os períodos de “mini-ciclos governativos” não têm o hábito de acabar bem. Na Primeira República, por exemplo, entre 1910 e 1926, tivemos 45 governos — o que dá uma alegre média de quase três governos por ano. Alguns duraram um dia, outros sete, outros oito, outros 12, outros 35, outros 52. Houve um que, exoticamente, se aguentou de forma brava durante 1 ano e 282 dias. Nesses mesmos 16 anos, Portugal teve oito Presidentes da República — ou seja, um de dois em dois anos.
Como toda a gente deveria saber apesar daquilo que lhes é ensinado na escola, a Primeira República não foi uma democracia nem um Estado de Direito. Mas, se não serve de exemplo, serve pelo menos de alerta: um regime que vive em “mini-ciclos governativos” é um regime sem soluções; e um regime sem soluções é um regime que tem um problema.
Já se sabe: quando os partidos não se governam, surge sempre alguém para os governar. É por isso que Marcelo avisou: se o Orçamento for chumbado e o país tiver três eleições legislativas em três anos, aumentam de forma drástica as possibilidades de o próximo Presidente da República ser alguém de fora dos partidos.
Convém que as almas mais inocentes não se deixem iludir: caso o almirante Gouveia e Melo seja eleito, o regime não vai ficar na mesma. Já vimos isto noutros países e já vimos isto em Portugal. No dia a seguir às eleições, o novíssimo Presidente Gouveia e Melo começará imediatamente a tentar construir uma maioria política que sirva de suporte e de instrumento para a sua ação. Porque, como é óbvio, caso seja eleito, Gouveia e Melo não interpretará essa escolha do povo como um mandato para cortar fitas, mas sim para mandar. Aliás, na sondagem desta semana da TVI/CNN, os mesmos eleitores que entregam a sua intenção de voto ao almirante também defendem, de forma reveladora, que o sucessor de Marcelo Rebelo de Sousa “deve intervir mais”.
Há 50 anos, o primeiro Presidente da República eleito em democracia também foi um militar que veio de fora dos partidos. Mas o general Ramalho Eanes não ficou fora dos partidos durante muito tempo. Rapidamente, começaram a surgir “eanistas” no PS, “eanistas” no PSD, “eanistas” no CDS — e até surgiram, imagine-se, “eanistas” no interior da campanha presidencial do general Soares Carneiro, que concorria contra o próprio Eanes em 1980. Vários socialistas deixaram o PS para apoiarem o Presidente da República e, no PSD, uma cisão violenta que tinha o mesmo objetivo fez com que Francisco Sá Carneiro perdesse metade do seu grupo parlamentar de um minuto para o outro. No final, o país ganhou um novo partido, chamado PRD (Partido Renovador Democrático), que pretendia prolongar a intervenção política de Ramalho Eanes quando, ao fim de dois mandatos, deixasse o Palácio de Belém. Essa aventura partidária foi um clamoroso fracasso, mas o ponto não é esse. O que importa sublinhar e compreender é que, se for eleito Presidente, o almirante Gouveia e Melo não ficará suspenso no vazio, dependente das ações ou dos impasses dos atuais partidos políticos. Juntamente com a farda, virá a vassoura.