Não é só o azar que atormenta os povos. É também a sorte. E a sorte que mais atormenta os comentadores portugueses, enquanto pelo mundo triunfam Salvinis e ganham Bolsonaros, é que a pátria continue ditosamente isenta de uns e de outros. No tempo dos populismos, somos o país onde as elites dormem descansadas. De tal modo, que para nos exaltarmos com o fascismo, como agora voltou a ser moda nos estúdios de televisão, tivemos de ir pedir o drama emprestado ao Brasil.
Há quem, a propósito da falta de uma Le Pen portuguesa, nos mande agradecer ao PCP e ao BE. Talvez seja demasiado paradoxal: estas são as forças políticas que inicialmente mais ameaçaram a democracia em Portugal, e que hoje, aliás, concordam frequentemente com Le Pen sobre a União Europeia. É-nos dito, no entanto, que fixam o “descontentamento” em formas restritas e digeríveis pelo sistema, como se vê pela “geringonça”. Desculpem a minha descrença. Comunistas e neo-comunistas fixam sobretudo os interesses e as opiniões de uma parte dos dependentes do Estado. E se o Estado não pudesse remunerar a dependência?
Não, o comunismo não é a vacina contra Le Pen, como aliás se vê no leste da Europa. A memória de ditaduras fascistas também não, como a Itália, a França ou agora a Alemanha sugerem. A razão pela qual não há Le Pen em Portugal é que o PSD e o CDS integraram as direitas na democracia, de uma forma, aliás, que as esquerdas nunca chegaram a ser integradas — e daí a sobrevivência do PCP e do BE. Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral queriam genuinamente para Portugal um regime como os da Europa ocidental. Por isso, nem no auge da reacção contra o PREC consentiram saudosismos autoritários. Depois de 1974, em Portugal, só os partidos da esquerda continuaram a identificar-se com ditaduras e ditadores. Mas também não há uma Le Pen em Portugal porque, entre 2011 e 2015, contra todas as esquerdas, Passos Coelho, Paulo Portas e o presidente Cavaco Silva asseguraram o ajustamento financeiro, e assim evitaram as rupturas sociais e institucionais que poderiam ter favorecido movimentos anti-sistema.
No entanto, Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Cavaco Silva, Passos Coelho e Paulo Portas foram, todos eles, acusados de “fascistas”. Tal como Frank Carlucci, que em 1975 apostou na democracia em Portugal, ou Angela Merkel, que não desistiu do sul da Europa durante a crise do Euro. É verdade que durante algum tempo, a imputação de “fascista” pareceu ceder à de “liberal”. Há dois anos, o problema da direita em Portugal era ainda ser “demasiado liberal”. Agora, de repente, já não é “suficientemente liberal”. “Liberal” ou “fascista”, não interessa: a direita nunca está bem, é sempre ilegítima. Às esquerdas, com a excepção intermitente do PS (tem dias), nunca interessou perceber o que António José Saraiva explicou no República logo em 1974, para grande escândalo dos seus então correligionários: que um regime onde conservadores e liberais, sistematicamente apodados de “fascistas”, não tivessem lugar, nunca seria uma democracia.
A influência que a geringonça deu a comunistas e neo-comunistas, mais a raiva socrática contra a direita, terá limitado ainda mais, à esquerda, a compreensão de que não há democracia sem pluralismo. Por isso, talvez já seja possível antecipar a estratégia da actual maioria social-comunista quando sentir o poder a escapar-lhe. Rui Rio ainda poderá estar descansando, porque todos o dão já como derrotado: mas o próximo líder da direita portuguesa com chances de chegar a primeiro-ministro há de ser acoimado de “fascista” e cercado pelo ódio alucinado de comentadores televisivos a babarem-se ao vivo e convidados de festival literário a prometerem emigrar. Havemos de ter um Bolsonaro, dê por onde der, de maneira que a direita que não votar em Costa, em Catarina ou em Jerónimo, não possa ser “suficientemente liberal”. A peça estreou no Brasil, e já começou a ser ensaiada em Portugal.