António Costa não gosta de falar claro. Sobretudo aos eleitores. Sobretudo em campanha eleitoral.

Lembram-se de como foi há quatro anos? Muito cedo começou a congeminar uma aliança com os partidos à sua esquerda – mais exactamente quando, logo no congresso em que foi entronizado, se manifestou enigmaticamente contra o conceito de “partidos do arco da governação”. Mais perto das eleições, quando começou a perceber que até podia perder para a coligação PSD/CDS – um cenário impensável num país que saía de um duríssimo programa de assistência financeira – tratou de iniciar conversas com o PCP (e também com o Bloco, mas de forma menos formal) ainda antes dos portugueses votarem. Disse alguma coisa? Avisou alguém? Só de forma sibilina: anunciando que não deixaria passar um governo de Passos mesmo que Passos ganhasse (mas sem maioria absoluta). O que significava que já estava de olho numa solução de “maioria de esquerda”. Só que nunca falou nela.

Como sempre, o líder do PS dá a entender uma coisa e o seu contrário, criando a ilusão de que aquilo que fez estes quatro anos – navegar à bolina, de negociação em negociação, mas sempre com a tranquilidade de saber que os partidos das geringonça não podiam roer a corda – é receita para mais uma legislatura. Mas não é. E ele sabe que não é.

E agora, será que está a falar claro aos eleitores? Será que, mesmo fazendo aquilo que todos os líderes fazem numa campanha eleitoral – pedir mais votos, sugerir que quer a maioria –, estava a ser sincero quando dizia que esperava renovar a geringonça? Ou quando solenemente a elogiava como referencial de “estabilidade política, previsibilidade das políticas, normalidade institucional e respeito pela Constituição“? Ou o que vale são os seus avisos sobre o risco de uma instabilidade “à espanhola” e os seus ataques aos seus parceiros de geringonça, dizendo que que não sabe se pode contar com eles?

Como sempre, o líder do PS dá a entender uma coisa e o seu contrário, criando a ilusão de que aquilo que fez estes quatro anos – navegar à bolina, de negociação em negociação, mas sempre com a tranquilidade de saber que os partidos das geringonça não podiam roer a corda – é receita para mais uma legislatura. Mas não é. E ele sabe que não é.

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O que fez a geringonça foi a derrota de 2015. Não apenas a derrota do PS por comparação com a PaF (recordemos os números: 38,5% contra uns humilhantes 32,3%), mas também o PS ter eleito menos deputados do que o PSD (89 deputados contra 85). Foi essa derrota que encostou o PS e os partidos à sua esquerda às cordas e os obrigou a um acordo que teve como objectivo central impedir que Passo voltasse a ser primeiro-ministro. O tom exacto foi o dado pelo PCP na reacção aos resultados eleitorais, logo na noite de 4 de Outubro: “O PS só não forma Governo se não quiser.”

O que se passou a seguir todos conhecemos: a geringonça por vezes esticou, mas nunca quebrou. Com os ventos da economia a correr de feição, as taxas de juro do Banco Central Europeu a ajudarem, os sindicatos domesticados para não denunciarem os efeitos que as cativações começavam a ter nos serviços públicos, só com o aproximar do final da legislatura houve momentos de maior tensão (lei laboral, decida contra a geringonça, lei de bases do SNS, decidida a contento da geringonça).

Tanto o PCP como o Bloco sabiam que não podiam provocar uma crise – quem o fizesse seria fatalmente penalizado pelos eleitores. Por isso engoliram o que tiveram de engolir, mas não tiveram de engolir muito, pois o PS de Costa é tudo menos reformista. Preocupa-o o dia seguinte, a próxima curva na estrada, tudo o que não perturbe a maior das suas prioridades: ocupar o poder, usar o poder.

Agora vai ser diferente e todos sabem que vai diferente mas ninguém quer assumir que será diferente. O mais transparente de todos é, apesar de tudo, como sempre, o PCP de Jerónimo de Sousa, que já disse claramente que “não estamos obrigados a tentar repetir o acordo de 2015”.

Não estão obrigados nem vão fazê-lo. Não têm nenhuma vantagem nisso. O PCP está e estará mais confortável longe do Governo. Mas o Bloco não. O Bloco está mortinho por ter um ministro, ou mesmo dois ou três. Também é isso que lhe pede a sua base eleitoral. E é disso que Costa tem medo. Por isso é que fala de Espanha e da instabilidade em Espanha.

Para o eleitor comum é conversa de chinês. Ninguém entende como pode um governo de um PS vitorioso ser mais instável do que foi o governo de um PS derrotado – a estabilidade da geringonça mata à nascença, no raciocínio do eleitor comum, o argumento da “instabilidade espanhola”. Pior: ninguém entende como pode um Costa com várias escolhas – no domínio da especulação, pode fazer várias alianças, do Bloco ao PAN, para já não falar do PSD, mas já lá vamos – estar a falar do bloqueio madrileno.

Na verdade eu entendo. Uma das particularidades das triangulações da geringonça é que aquela dança precisava de ser equilibrada a três. O PCP está sempre com um olho no Bloco e o Bloco com um olho no PCP. É ridículo, porque as bases eleitorais dos dois partidos são sociologicamente cada vez mais diferentes, mas é uma herança da história e uma decorrência da ideologia (escondida) dos bloquistas.

Por isso é que ter a Catarina e as manas Mortágua no “arco da governação” com o PCP de fora é como trazer o saco das brasas e também o próprio inferno para mesa do Conselho de Ministros, tudo num tempo que não será tão bonançoso como foram estes últimos quatro anos. Costa tem consciência disso e Centeno ainda mais.

Uma coisa parece certa. A geringonça tal como a conhecemos não ressuscitará. Mas há sempre outras hipóteses, do calhambeque à caranguejola, passando quiçá pela passarola.

Só que, como sempre, não gosta de falar claro. Percebe-se a inquietação quando atira setas envenenadas ao Bloco (como essa ideia de que a geringonça “foi construída apesar do Bloco de Esquerda”), uma retórica que logo adocica no dia seguinte. O que deixa a dúvida: em que pensa realmente? Estará seriamente a pensar governar com o PAN e pôr-nos todos a comer tofu ou a alimentar colónias de gatos na via pública? Ou a sua grande esperança é… Rui Rio?

Eu sei, eu sei, o líder do PS já jurou vazes sem conta que ele não é homem de “blocos centrais”, até disse que essas soluções matam a democracia. Mas eu também me lembro de o ver em congressos do PS, no tempo de Sócrates, fazer inflamadas intervenções contra os partidos esquerdistas. Tal como me lembro de se contar que, no sábado anterior às eleições de 2015, quando todas as sondagens espalhavam o desânimo entre as hostes socialistas, ele ter enigmaticamente comentado que elas não eram tão más como isso – e não eram, como se viu com a solução política que engendrou.

E agora, que a subida do PSD, mais até do que a estagnação do PS, fazem da maioria absoluta do PS cada vez mais uma absoluta miragem, ele é capaz de estar a pensar o mesmo – ou seja, a pensar que as sondagens afinal não trazem tão más notícias como isso. É que, com resultados assim, Rui Rio poderá aguentar-se à frente do PSD, e com Rio à frente do PSD todo um novo mundo de novas possibilidades se abre – e que mundo, deus meu.

Uma coisa parece certa. A geringonça tal como a conhecemos não ressuscitará. Mas há sempre outras hipóteses, do calhambeque à caranguejola, passando quiçá pela passarola. Domingo à noite logo veremos.