Vamos quase com meio ano de guerra. Ao contrário do que todos previam, nem as tropas russas esmagaram a Ucrânia, nem sanções ocidentais dobraram a Rússia. A este respeito, a guerra tem sido reveladora: quanto mais os governos europeus tentam desligar-se da ditadura russa, mais claro se torna o modo como deixaram que o regime de Putin se tornasse parte do nosso mundo, ao ponto de não ser fácil separarmo-nos dele.

Começamos assim a perceber melhor o que foi a época do “fim da história”, a seguir a 1989. Não foi simplesmente o tempo em que nos convencemos de que as ditaduras estavam destinadas a dar lugar a democracias. Foi  também o tempo em que deixámos de dar importância ao carácter autoritário dos regimes, desde que não nos ameaçassem abertamente, como a Coreia do Norte ou o Irão.  Durante a Guerra Fria, o Ocidente e a União Soviética eram dois mundos à parte. Depois, democracias e ditaduras passaram a fazer parte de um mundo só, o da globalização. A integração económica entre os EUA e a China comunista, por exemplo, não levantava em geral mais dúvidas do que as que diziam respeito à lealdade da concorrência chinesa. Tudo o mais que se pudesse dizer era logo menosprezado, pelos sábios, como “conversa de guerra fria”. Foi assim que na Europa a Alemanha se tornou dependente da Rússia.

A complacência era tão grande que uma invasão russa da Ucrânia não chegou para o Ocidente perceber o que era o regime de Putin. Foram precisas duas, porque depois da anexação russa da Crimeia, em 2014, as obras do novo gasoduto a ligar a Alemanha à Rússia continuaram imperturbavelmente até este ano. Devemos admirar-nos por Putin se ter sentido tentado a testar mais uma vez a tolerância ocidental às suas conquistas? A questão é a de perceber donde veio esta complacência quase suicidária.

Não é um grande mistério, se pensarmos que o Ocidente – os EUA, a Europa ocidental e, a partir de certa altura, o Japão – produziu durante quase duzentos anos, entre o fim do século XVIII e a o princípio do século XXI, a maior parte da riqueza mundial. Em 1989, assistiu ao colapso da União Soviética, que tentara disputar a sua primazia. É muito natural que se tivesse persuadido de que correspondia ao mais elevado patamar da evolução da humanidade, e que, portanto, podia desprezar a prudência dos séculos e permitir-se as mais variadas experiências.

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Daí, por exemplo, a integração das ditaduras chinesa e russa. Daí, também, a fabricação de dinheiro como meio de resolver problemas, fosse a crise bancária de 2008 ou a pandemia de 2019. Daí, ainda, a disponibilidade para renunciar aos elementos que estruturaram historicamente as sociedades, como as fronteiras e as identidades nacionais. Os resultados desta complacência só podem surpreender quem acreditou mesmo que não havia limites para o poder ocidental. A destruição de fronteiras e de identidades nacionais, em nome da inclusão, apenas fez sociedades mais divididas e menos seguras. A fabricação indisciplinada de dinheiro levou previsivelmente à inflação, um flagelo para os mais pobres. A arrogância globalizante deixou as ditaduras corromper e subverter o mundo. Como poderia ter sido diferente?

O Ocidente precisa de humildade. Precisa de aprender que não é todo o mundo, mas apenas uma parte do mundo. Precisa de aprender que os seus regimes políticos, por melhores que sejam, nem por isso são menos perecíveis. Precisa de respeitar as tradições que sustentaram a sua prosperidade e liberdade. Precisa, em suma, de readquirir a prudência que vem da consciência dos limites. É por isso que esta guerra na Ucrânia não é só uma guerra com Putin: é também uma guerra connosco próprios, contra a nossa complacência e distracção.

PS: O presidente da Câmara Municipal de Lisboa já disse que não prometeu erguer uma estátua a Vasco Gonçalves. A uma vereação democrática, a figura histórica de Vasco Gonçalves não deveria merecer nenhuma espécie de homenagem. Sim, o general colaborou no derrube da ditadura salazarista. Não o fez, porém, para instaurar o regime democrático pluralista em que vivemos, mas outra ditadura. Felizmente, falhou. Deve ser estudado, não celebrado.