Há, é claro, o medo da morte desamparada e da dor física insuportável. Mas, tirando isso, o que importa antes de tudo o mais às pessoas, não o convém nunca esquecer, é o dinheiro. O dinheiro que lhes permite resistir ao fim do mês, e, nos casos mais difíceis, conseguir respirar mesmo no princípio e ir aguentando como se puder os dias que, entretanto, passam. Tudo o resto, mesmo as coisas mais valiosas como o amor, a amizade e os prazeres sortidos em geral, vem depois. Não falo sequer da liberdade, que, no essencial, é definida a partir da consideração do que se deseja como valioso e varia em função das escolhas que se fazem nesta matéria. A liberdade, com a excepção de certas formas muito gerais e abstractas, é sempre a liberdade de cada um e de cada momento.

Devo ter acordado muito pedestre para me apetecer falar disto. Mas é verdade que os tempos nos aconselham a sermos um bocadinho pedestres e a olhar com algum cepticismo – e, às vezes, com mais do que cepticismo: com pura e simples descrença – para as conversas com que se entretém o chamado “espaço público”. Nele, as verdades básicas são submetidas a processos vários de ocultamento. Os mais comuns residem na sublimação da prosaica questão do vil metal em “projectos de sociedade”, na conversa sobre o que a sociedade deve ser para ser uma sociedade justa. Ora, isso, além de inevitável, está muito bem: a discussão sobre o que é uma sociedade justa é uma conversa a manter. O mal é quando o universo das palavras toma conta de tudo e se desapega da realidade. As preocupações elementares das pessoas, de tão vestidas com roupagens ideológicas, tendem a tornar-se invisíveis. Eu sei bem que a ideologia é inescapável e que, além disso, é até um meio para ajudar à conversa que importa. Mas, quando a linguagem ideológica toma conta de tudo, sobra pouca atenção para o que verdadeiramente interessa, que é a vida real das pessoas e os problemas por que elas passam.

Confesso que, por causa disto, não levo muito a sério os combates ideológicos, quando eles se alçam ao elevado plano dos princípios e das teorias gerais da sociedade. Não é que não me sinta mais próximo do chamado liberalismo e que não reconheça que o socialismo (seja o que for que a palavra queira dizer) abunda em consequências danosas para a sociedade. O problema é que, dado a sociedade ser o que é – um magma só precariamente determinável de interesses, instituições e acções -, nenhuma teoria geral, por mais sagaz que seja, a pode esclarecer univocamente. Acresce a isto que, ao contrário do que alguém dizia dos sistemas filosóficos, as concepções políticas contêm mais verdade naquilo que rejeitam do que naquilo que afirmam. É preferível, por isso, uma certa inconsistência. O melhor é somar rejeições sortidas. Pode ser que seja a única maneira de chegar a algo positivo.

Se a discussão teórica, quando visa efeitos políticos, corre o risco da puerilidade, quando não de algo muito pior que isso, já a discussão propriamente política sobre as acções dos governos faz obviamente todo o sentido. E, olhando para Portugal, não custa observar que o caminho que o PS de António Costa segue, seja ele “socialista” ou outra coisa qualquer, só pode levar-nos a um lugar muito mau. Usando e abusando de uma linguagem oca e, no limite, incompreensível, não recuando perante nada que lhe permita a manutenção do poder, procurando esmagar qualquer manifestação de independência no seio do Estado e da sociedade, vai criando um mundo irreal alternativo que nos quer fazer crer que é o mundo real. Não é, e vamos todos, mais uma vez, pagar caro por esta brincadeira.

A começar, é claro, por uma maior pobreza. Ela vem aí, mesmo com a “bazuca”, inexorável e sem mistério nenhum. Nenhuma sociedade sobrevive em condições dignas num sistema de mentira permanente, do embuste metódico, que é aquele em que vivemos. Mentira da TAP, mentira das condições do SNS, mentira da educação, e por aí adiante. Mentira de tudo. Quando as pessoas se derem conta de que o pensamento a crédito no qual vivem não passa de uma colossal ilusão, será já demasiado tarde. Perceberão o erro de terem acreditado em quem nunca se preocupou com a construção de uma sociedade viável, onde a riqueza pudesse ser criada. A linguagem oca surgir-lhe-á como aquilo que realmente, desde o princípio, é: linguagem oca. E descobrirão que a linguagem oca lhes deixou os bolsos vazios. Vária gente não passará, é claro, por estes tormentos. Mas as pessoas mais desprotegidas, que são muitas e serão muitas mais, terão uma experiência dura.

De bolsos vazios, não haverá dós de peito ideológicos que as animem. E verão a liberdade a diminuir a olhos vistos. Não, talvez, nas suas formas mais abstractas e gerais, mas certamente nos seus aspectos mais concretos: a liberdade de decidirem por si o que lhes é valioso e de buscarem a satisfação dos prazeres que desejam, incluindo o de sentirem algum orgulho em pertencer a uma comunidade política digna. A herança certa e segura de Costa será essa desilusão. Quanto aos seus putativos herdeiros no PS: não interessa nada.

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