Fernando Medina anunciou, na sexta-feira passada, que vai apresentar queixa na Autoridade da Concorrência contra as plataformas digitais como a UberEats, devido à margem de 35% que estas cobram aos restaurantes pelas entregas ao domicílio. A decisão tem tanto de atroz quanto de socialista, pois visa, através de uma desqualificação moral, legitimar a entrada da Câmara de Lisboa no negócio da distribuição de refeições ao domicílio.

Com o fecho compulsivo da restauração, primeiro durante o confinamento e agora aos sábados e domingos a partir das 13 horas, a que acresce o receio que a maioria tem em ir a restaurantes, as plataformas digitais foram a salvação para muitos destes negócios. Não só os restaurantes não se preocuparam com o custo acrescido que as plataformas digitais cobram, como os próprios consumidores aderiram em massa. Todos ganharam. Todos? Não. O presidente da Câmara de Lisboa e seus acólitos não gostaram do que aconteceu. Para Fernando Medina, que pretende conquistar votos com demagogia e gastar o dinheiro dos contribuintes a estragar negócios, não é legítimo ganhar dinheiro a trabalhar (e criar um negócio e explorá-lo, é trabalhar). Para um socialista é imoral ter lucro, mas não é imoral a câmara municipal liderada por um dos seus ter apresentado um passivo de 867 milhões de euros, só em 2019. Para um socialista, uma empresa ser bem-sucedida é um acto predatório, mas um governante utilizar o poder político para destruir negócios, já é de louvar.

Não tenho qualquer relação comercial, profissional ou pessoal com quem quer que seja que trabalhe em qualquer destas plataformas digitais. Nem sequer sou cliente. O que não me dá o direito de criticar o negócio ou quem o usa, principalmente quando este nada tem de errado. O que há de errado é a necessidade, habitual entre os maus governantes, de se criarem ocorrências que distraiam os eleitores daquilo que é importante: a Câmara Municipal de Lisboa é mal gerida e gasta milhões de euros, que são nossos, em más decisões e no meio de muita incompetência. Exemplos? São vários. Veja-se o contrato que Medina assinou para a realização da Web Summit, que se traduz no pagamento de 11 milhões de euros aos realizadores do evento, só neste ano em que a conferência se realiza à distância, ou seja, sem que alguém se desloque a Lisboa. Outro caso é o da Carris, que se prepara para receber um aumento de transferências orçamentais do município na ordem dos 82%, apesar da quebra orçamental que ocorreu como consequência da paragem derivada à pandemia. O orçamento é um excelente instrumento para analisarmos a gestão camarária de Medina de uma forma mais abrangente. Atentemos no seguinte: em 2014, o orçamento da CML era de “apenas” 730 milhões de euros. Em  2018, já ia nos 1099 milhões de euros, passando para os 1187 milhões em 2019. Neste ano de 2020, foi previsto ser de 1300 milhões de euros. A subida constante deveu-se ao conhecido “boom” no imobiliário e no turismo. Basicamente, aos negócios que a esquerda denominava de especulação imobiliária e que qualificava como responsáveis pela desconfiguração da cidade. Um jogo duplo, que lhe permitiu aproveitar-se do aumento da receita que daí advinha, para gastar em projectos que dessem aos seus protagonistas um curriculum para outros voos políticos, em vez de colocar as contas em ordem e assim alcançar a sustentabilidade financeira da autarquia, tão necessária para os anos vindouros, principalmente os de crise. Entretanto, o turismo e o imobiliário tornaram-se praticamente inexistentes em 2020 e a receita pública caiu a pique. Em 2021 está prevista uma redução do orçamento para os 1052 milhões de euros, ainda muito superior aos 730 milhões de euros de 2014. Os gastos aumentaram quase para o dobro e agora que a receita caiu de forma abrupta, não é difícil imaginar o desastre. O endividamento é atroz. Tão atroz, quanto a forma como Medina, procurando desviar as atenções sobre este assunto, dispara para cima das plataformas digitais como se estas fossem responsáveis dos males que vamos ter de suportar. A verdade é que há um enorme buraco orçamental na Praça do Município que vamos ter pagar nos próximos anos.

O socialismo apresenta dois tipos de problemas muito simples: ao criar clientelas que vivem do erário público, destrói as finanças públicas, descredibiliza as instituições públicas e reduz a quase nada a capacidade de um órgão municipal, como é a Câmara Municipal de Lisboa, para agir num período de crise, que é quando os cidadãos mais precisam. Este é um problema económico com óbvias repercussões políticas. O segundo problema é de cariz meramente político e com repercussões económicas. Consiste na distorção do papel do poder político numa democracia. Num Estado democrático, não cabe ao poder político fiscalizar a actuação dos cidadãos. Para isso servem a polícia e os tribunais, nos crimes e nas contra-ordenações. Num Estado democrático, um governante não profere sentenças morais sobre a vida ou a actividade comercial de quem quer que seja. Pelo contrário, são os cidadãos que fiscalizam o poder político. Não é Fernando Medina que deve ditar sentenças sobre as plataformas digitais. São estas, como são os empresários da restauração a par com os habitantes de Lisboa, que devem julgar Fernando Medina. São os cidadãos que, de quatro em quatro anos, decidem se um político deve ou não continuar a exercer o cargo para que foi eleito. Num Estado democrático, um governante deve cumprir regras e nunca esquecer que o Estado não é só democrático; o seu poder também é limitado. A civilização humana atingiu este patamar há mais de 240 anos. Seria indispensável para o bem-estar de Portugal e da democracia portuguesa que os actuais dirigentes socialistas se apercebessem finalmente disto. Tal requer apenas um pouco de humildade, mas se o assunto for mais grave, também são muitos os manuais de Ciência Política por onde podem começar a estudar.

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