Prezo ouvir a Dra. Raquel Varela, sobretudo quando se pronuncia sobre os assuntos que investiga. Todavia, quando a Dra. explora territórios desconhecidos, fá-lo com a audácia de um kamikaze. Consternada com o intolerável militarismo dos seus colegas de debate, insurge-se contra a “ignorância dos líderes ocidentais” ao mesmo tempo que exibe a sua de forma esplendorosa. A abnegação é uma virtude na guerra e não só, mas não é um requisito do rigor histórico e nada tem que ver com o desprezo pela verdade.

No Último Apaga a Luz (RTP-3, 29/04/22)), a investigadora afirma em alto e bom som que a NATO é uma “instituição ofensiva.” Uma organização militar “ofensiva” cuja presença nas fronteiras com a Rússia em 2017 resumia-se a cerca de 800 militares na Estónia, 1200 na Letónia, 1200 na Lituânia e 4000 na Polónia. Presentemente, a NATO dispõe de cerca de 40,000 soldados em toda a fronteira oriental da Europa. Uma força ofensiva deveras portentosa, sem dúvida.  Moscovo fala de “ameaças externas” imaginárias poucos minutos depois de testar um novo míssil intercontinental. A NATO recusa-se, por boas razões, a intervir directamente na Guerra da Ucrânia e não ameaça, implícita ou explicitamente, Moscovo com armas de destruição maciça. A NATO cedeu armas nucleares tácticas à Ucrânia? Não.

A não ser, claro, que a “contra-imagem existencial” (Giuseppe Di Palma) das prósperas democracias liberais do Báltico e as incipientes da Polónia e da Hungria (etc.) sejam as verdadeiras ofensas ao autoritarismo nepotista russo. Putin não quer, decididamente, novas Alemanhas Federais ao lado de novas Repúblicas Democratas Alemãs autoritárias e nepotistas.  A Dra. não se cansa de nos informar que a Ucrânia está longe de ser uma democracia liberal exemplar. Ainda não é, certamente, mas já deu os primeiros passos, com a realização de eleições livres, meticulosamente monitorizadas por observadores externos fidedignos, para não falar das centenas de organizações civis que lutam contra a corrupção e que exercitam vigorosamente as mais elementares liberdades políticas.

Que ideais inspiraram as manifestações do Euromaidan? Suponho, quiçá erradamente, que a Dra. acredite que foram os malévolos serviços de inteligência do ocidente que persuadiram dezenas de milhões de Ucranianos a apoiar as manifestações nas ruas de Kiev, como é propagado pelo Kremlin. Um dos poucos legados invejáveis do totalitarismo soviético foi uma aversão visceral à agitprop, venha ela de onde vier. Piotr Sztompka, no seu magistral ensaio “Os intangíveis e os imponderáveis da transição para a democracia”, aborda como poucos o insidioso legado político cultural do comunismo e a desconfiança visceral dos subjugados à propaganda estatal. Para os Ucranianos, o ideal da UE como uma “superpotência cívica” nunca foi uma fantasia de um burocrata frustrado. Era e continua a ser um futuro possível que inspira o activismo político. O pavor das autocracias pela democracia liberal é perfeitamente compreensível porque a liberdade e a prosperidade dos outros é sempre corrosiva quando pode ser constatada e comparada com a repressão política e a oligarquia económica. A história repete-se, mas nunca da mesma forma, dizem os historiadores, ironicamente.

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Os decisores militares e políticos ocidentais sabem, desde sempre, o quão inseguro e perigoso é o urso russo. Foi principalmente por esta  razão que, tal como os documentos recentemente divulgados pelo jornal El País revelam de forma inequívoca, os EUA propuseram à Rússia, no dia 17 de Dezembro de 2021, a adopção de “medidas de transparência e de compromissos recíprocos para impedir a instalação de sistemas terrestres de mísseis ofensivos e de forças militares permanentes de combate no território da Ucrânia.” (El País, 2/2/2022) Porque é que a Rússia não aceitou estas propostas no mês de Dezembro de 2021 que garantiriam, de facto e de jure, a neutralidade militar ucraniana? A aceitação desta proposta poderia ter sido um precedente auspicioso para Moscovo, apesar da NATO jamais ter sequer sugerido a instalação de mísseis na Ucrânia, ao contrário do que afirma a Sra. Dra. Varela do alto do seu pedestal mediático. Porque é que a NATO nunca propôs tal enormidade? Uma aliança ofensiva comporta-se assim? Moscovo sabe que a NATO nunca contemplou a ideia lunática de ameaçar a Rússia militarmente.

Chris Miller, num interessante artigo publicado na revista Cicero em 2014 (28/05), coloca uma pergunta pertinente: se a célebre garantia verbal da não expansão da NATO foi de facto proferida aquando da reunificação da Alemanha (e tudo indica que foi), porque é que Moscovo nunca exigiu a sua formalização? Além disso, porque é que Clinton, no seu último encontro com Yeltsin em Istambul (Novembro, 1999), disse não à solicitação do líder russo que os EUA “dessem” a Europa à Rússia? O presidente americano teve de explicar ao seu congénere russo que a Europa não era sua para dar e que eram os parlamentos nacionais, e não Washington, que decidiam se deveriam aderir à NATO.

A Dra. Raquel poderá investigar estes e outros assuntos com o mesmo rigor que investiga os movimentos sindicais e revolucionários europeus. Adiante. As retumbantes derrotas de Napoleão e de Hitler foram instrutivas e constam em todos os manuais ocidentais de estratégia militar. A Dra. Raquel esquece-se que qualquer projecto ofensivo da NATO teria de ser aprovado por parlamentos nacionais. Duvido que uma provocação da Rússia fosse subscrita pelos nossos eleitos politicamente correctos.

Macron anunciou pomposamente a “morte cerebral” da NATO e Trump criticou a parcimónia dos aliados europeus que não honram o princípio do burden sharing, algo que se recusaram a fazer até há dois meses e meio, em grande parte porque o reforço substantivo do investimento militar em nada contribuirá para a sustentabilidade dos generosos estados sociais europeus. Um país imperialista (EUA) não exige aos seus parceiros que se armem.

Um pequeno passo separa a militarização da UE de uma “autonomia estratégica” que poderia contrabalançar ou condicionar o poderio americano. Uma hegemonia plena requer a primazia militar. Um império bizarro, sem dúvida. Além disso, não são poucos os congressistas americanos que pretendem investir nos EUA o que se gasta no estrangeiro. De facto, até há pouco tempo a NATO parecia estar em guerra consigo própria. Uma aliança ofensiva deitada no sofá de Freud, atormentada e debilitada por problemas existenciais e orçamentais? Absurdo, claro.

Moscovo, todavia, confundiu a prudência e a angst ocidental com uma mórbida indiferença. Aliás, parece-me inegável que Putin decidiu avançar para a guerra porque acreditava, correctamente, que a NATO estava mais fraca do que nunca. A mobilização frenética das forças da NATO depois da invasão da Ucrânia demonstra claramente que as existentes até então no Báltico e na Polónia seriam, e ainda são, insuficientes para garantir plenamente a defesa da Europa. A defesa, note-se. Eram e continuam a ser pouco mais do que uma garantia defensiva e certamente precária da tranquilidade de sociedades que já sentiram na pele as agruras infernais do imperialismo russo.

Não foi a NATO que se expandiu ofensivamente, foram os governos democraticamente eleitos do leste que a ela se juntaram livremente e democraticamente, como explica Andris Banka no seu interessante artigo “The breakaways: a retrospective on the Baltic road to NATO.”

Imagino que, se confrontada com estes factos e argumentos, a Dra. Raquel refugiar-se-ia nas sempre reconfortantes equivalências morais da esquerda Portuguesa: “e a crise dos mísseis de Cuba, e….?” A Venezuela, Nicarágua e Cuba, três autocracias exemplares para boa parte da esquerda portuguesa, aprofundaram significativamente as suas relações político-militares com a Rússia desde 1999, antes da adesão dos países bálticos à NATO. As predileções geoestratégicas dos inefáveis líderes destes países são conhecidas de todos e já foram formalizadas em diversos acordos de “assistência mútua” que contemplam, entre outras coisas, a presença de conselheiros militares russos e a instalação de radares. Os EUA ameaçaram invadir a Venezuela, a Nicarágua ou Cuba?

Uma outra tese absurda defendida pela Dra. em prime time é o suposto genocídio de russos no Donbas. Como é que uma minoria (ucraniana) encurralada consegue levar a cabo um genocídio num território (Donbas) predominantemente controlado por uma maioria (russófonos do Donbas) que é apoiada pelo poderoso exército russo? Foram os russófonos que fugiram do Donbas? Não. Teria sido um feito militar tão sinistro quão colossal, certamente. Ou simplesmente impossível, diz-nos o mais elementar bom-senso. É verdade que Milosevic levou a cabo uma limpeza étnica num território (Bósnia-Herzegovina, massacre de Srebrenica, etc.) maioritariamente povoado por muçulmanos (51%, sérvios 31%) até ser travado pela intervenção da NATO. Contudo, era ele que detinha o controle da máquina de guerra herdada da Jugoslávia e, por conseguinte, era ele que controlava militarmente o território, com o apoio de sanguinárias milícias sérvias da Bósnia-Herzegovina.

Uma nota final. Num dos episódios do Último Apaga a Luz, a Dra. Raquel Varela cita um sociólogo ucraniano que, diz, corrobora as suas teses sobre as pérfidas milícias nazis que foram incorporadas no exército ucraniano e que representam menos de 1%% do número total de soldados ucranianos. O nome do sociólogo não é adequadamente audível, mas julgo que se trata de Anton Shekhovtsov. Se for este o nome que foi proferido pela Dra. Varela, sim, é verdade, este é um dos mais conhecidos investigadores da extrema-direita ucraniana, mas não, os argumentos do sociólogo que (aparentemente) citou no programa não corroboram os seus, Dra. Raquel Varela. Longe disso. Basta ler o artigo que o citado publicou online no Atlantic Council, “Why Azov should not be designated a foreign terrorist organisation.”(24/02/2020) Dra. Raquel Varela, antes de acusar outros de serem ignorantes, consulte as obras dos investigadores que cita. O think tank Soufan Center, por exemplo, considera o batalhão Azov uma organização neo-nazi. Acredito que seja, mas tentar usar este facto para conspurcar um governo democraticamente eleito e uma sociedade que luta pelo seu direito de auto-determinação é simplesmente repugnante.