Em 2012 os moradores do bairro de São Paulo, que na altura ainda eram representativos, uniram-se para tentar defender um mínimo de civilidade e tranquilidade no seu bairro, sobretudo durante a noite. Durante alguns anos, batalhámos junto da CML, das autoridades policiais, e na comunicação social. Foram várias petições públicas, os apelos na Assembleia Municipal, as queixas na Provedoria de Justiça; foram dezenas de reuniões com a CML e a Junta de Freguesia e centenas de queixas apresentadas.

Em conjunto com as outras associações de moradores da freguesia, alguma coisa conseguimos.

Conseguimos acabar com as after hours, que duravam até as seis horas da manhã, conseguimos reduções de horários, limitadores de ruído.

Não conseguimos, contudo, acabar com o que se passa durante a noite nas ruas da nossa freguesia, do Bairro Alto ao Cais do Sodré.

Gente a gritar pelas ruas às dias, três e quatro horas da manhã, património público e privado vandalizado diariamente, comércio de droga à descarada por todo o lado, rixas de gangues para controlo do território, toneladas de lixo espalhado pelas praças, jardins e ruas.

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Por volta de 2015, quando a moda da Rua Rosa já estava a desvanecer, fomos invadidos pelo turismo low cost, com as suas hordas de jovens atraídos para uma cidade onde tudo é permitido, onde a cerveja se vende ao preço da água da torneira e o botellón é rei. Quando Espanha e outras cidades europeias, que tinham passado pelo mesmo, já tinham conseguido impor alguma ordem, em Lisboa, a CML atraía os jovens estrangeiros, acenando uma cidade muito cool, onde se pode beber na rua e fazer o que se quiser na rua porque os Portugueses são gente muito simpática!

Com o turismo veio a especulação imobiliária, os Airbnb, e os hostels e, pouco a pouco, os moradores foram saindo, expulsos pelo ruído, lixo, vandalismo e insegurança – qual é o pai ou a mãe que quer viver num sítio onde para levar os filhos à escola tem que saltar poças de urina, papel e tampões higiénicos, copos de plástico e garrafas de cerveja partidas?

Em 2020 chegou a pandemia e para os moradores da Misericórdia voltou a ser possível dormir uma noite seguida sem acordar com urros na rua. O lixo também diminuiu substancialmente. O vandalismo – ditos tags – continuaram, mas em menor dose.

Enfim, durante alguns meses voltámos a conseguir dormir uma noite seguida e sonhámos com um futuro melhor no nosso bairro…

Esperávamos nós que a pandemia iria mudar comportamentos, tendências, afinal, a emergência climática assim o ditava.

Enganámo-nos. Os piores cenários do pré-pandemia regressaram em força. As autoridades municipais e de segurança pública não se veem, não se ouvem.

Os moradores que ainda restam sentem-se cansados, impotentes perante esta indiferença, esta aceitação da desordem pública e da violação dos direitos constitucionalmente consagrados à qualidade de vida e a um ambiente equilibrado, como sendo normal e desculpável, afinal, como respondia Fernando Medina a Clara de Sousa, no último debate da SIC, quando questionado sobre os excessos da noite: “Não é nada demais, apenas jovens a precisar de se libertarem depois dos meses de confinamento.

Ninguém se queixa, ninguém se indigna. Tudo se aceita.

Também ninguém questiona o preço pago pelo erário público em limpeza de ruas e paredes, recolha de lixo, e em saúde física e mental dos moradores, saúde pública de toda uma geração de futuros alcoólicos.

É este texto um grito de socorro, alerta, desespero, impotência, revolta, lançado pelo que resta de uma associação cívica de moradores que tentou até ao limite das suas possibilidades fazer alguma coisa pelo seu bairro, pela sua cidade, pelo seu país, um país onde as pessoas efetivamente não contam.