Tornou-se quase socialmente obrigatório criticar o debate entre André Ventura e Rui Tavares. É como falar do bom tempo e do mau tempo. Dá para todas as circunstâncias. Pois a mim não me apetece entrar nesse coro. Não tanto pelo que André Ventura e Rui Tavares disseram um do outro e um ao outro mas sobretudo por aquilo que ali ficou espelhado de nós enquanto país.

Recordo que Rui Tavares, provavelmente a querer reproduzir o modelo de Pedro Nuno Santos no debate com Rui Rocha, começou a sua intervenção a fazer uma espécie de nota prévia indignada, esquecendo que ia trazer para a discussão um assunto profundamente embaraçoso para si próprio: a relação dos políticos portugueses, particularmente dos políticos de esquerda, com os serviços públicos, neste caso com a escola pública que tanto dizem defender mas que não escolhem para os seus filhos. Invariavelmente apresentam uma justificação cosmopolita para tal opção: ora é porque os filhos devem ter uma escolaridade bilingue, ora porque é tradição (caso do Colégio Moderno) ora porque, como sucede com os filhos de Rui Tavares, frequentam uma escola internacional para não ficarem com o currículo interrompido se a mãe que é diplomata for colocada fora de Portugal. Todas certamente razões atendíveis e absolutamente normais não se desse o caso de nos últimos anos termos assistido à imposição do modelo estatista, à perseguição de tudo o que representa acordos entre público e privado e à identificação entre escolaridade obrigatória e frequência obrigatória de escolas públicas.

É aqui, nesta espécie de excepcionalidade virtuosa que os políticos, sobretudo os de esquerda, reivindicam para si, que entra a intimidade, politicamente falando. Em boa parte do mundo a intimidade passa pelas relações de natureza privada e familiar. Pelo amor, desamor, gostos, sexo. Em Portugal, quando um político invoca o seu direito à privacidade está tão só a dizer que não quer responder sobre a sua relação com os mesmos serviços públicos que tenta impor aos outros por decreto. A degradação dos serviços públicos leva quem pode a fugir deles. Os políticos não são excepção. Mas não querem falar disso e alguns não querem sequer que se fale sobre isso. Já no que à privacidade propriamente respeita, os políticos portugueses gerem razoavelmente a sua exposição. Nesta campanha, durante aquilo que se designa como entrevista intimista, vimos Pedro Nuno Santos a falar sobre o filho, o mesmo Sebastião que lhe subiu para o colo no congresso do PS. Vimos a sua emoção a crescer enquanto declarava sobre si e a sua mulher “queríamos uma família maior e não conseguimos”.

E ficámos à espera que Luís Montenegro respondesse às perguntas que disse ter formulado a si mesmo quando, depois de um pequeno acidente rodoviário, um dos filhos lhe telefonou a pedir ajuda mas ele que estava numa reunião limitou-se a falar com o filho “dois minutos” para o orientar e depois “prosseguiu a reunião”: “São momentos em que dizemos ‘onde estou? O que estou a fazer?”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há muitas décadas que os políticos fazem questão de mostrar o seu lado privado. Ou, melhor dizendo, partes seleccionadas dessa privacidade. É óbvio que muito disso é encenado mas também já foi mais encenado do que actualmente é. Há quem se sinta menos à vontade nesse registo e há quem capitalize mais dividendos políticos com essa exposição. Mas, com maior ou menor à-vontade, todos o fazem. Aliás a própria forma como o fazem é em si mesma politicamente relevante: quando em Setembro 1968, o novo chefe de governo Marcelo Caetano é fotografado na sua casa rodeados dos netos, numa atitude francamente informal, estava a criar uma imagem mais contemporânea do poder. Ressalvada a excepção dos militares no pós-25 de Abril, a novidade nesta matéria foi o paulatino alargamento desta exposição a áreas que politicamente a criticavam, como era o caso da extrema esquerda. Basta ouvir agora Mariana Mortágua no programa Casa Feliz com João Baião e Diana Chaves a comentar fotos dela e da irmã enquanto crianças “muito fofas” para perceber essa mudança. E se alguém tem dúvidas sobre o facto de o PCP estar a abandonar a política de secretismo em torno do seu líder e da sua família aconselha-se a que recupere as imagens de Paulo Raimundo a chorar quando começa a falar com Cristina Ferreira das dificuldades que os pais tiveram de enfrentar na vida para o criar a ele e ao irmão.

É óbvio que aquilo a que os nossos políticos actualmente chamam privacidade nada tem de privado mas sim de público. Mais precisamente aquilo a que alguns chamam privacidade mais não é que a tentativa de criar um tabu que impeça que se questione e debata como boa parte dos políticos se preserva a si e aos seus de sofrerem as consequência das opções que eles impuseram ao país.

PS. Quem leu o El Mundo de ontem deu com um título em que aparece a palavra Portugal e não por boas razões: “El viaje de las narcolanchas: astillerosen Portugal, naves en Castilla-La Mancha y números de serie borrados por el camino” Por outras palavras, segundo o El Mundo é em Portugal que estão os estaleiros onde são construídas as poderosas lanchas usadas no tráfico de droga naquele país. Apetrechadas com quatro motores, atingem 110 km por hora e fazem a travessia entre Espanha e Marrocos em 15 minutos. Foi uma lancha destas que na passada semana abalroou uma pequena embarcação patrulha da Guarda Civil, matando dois agentes. Para as autoridades espanholas é óbvio que as embarcações são construídas no norte de Portugal, levadas seguidamente em enormes camiões até Espanha onde são apagados os números de série e feitas as adaptações finais para que consigam transportar os fardos de droga. Mais precisamente Portugal será, segundo as fontes citadas pelo El Mundo, “o enclave logístico das narcolanchas” que operam em Espanha. Cada uma delas consegue transportar até 3000 kg de carga.

São cada vez mais e mais graves as notícias sobre o impacto do narcotráfico em algumas zonas de Espanha, França ou nos Países Baixos. Em Portugal acredita-se que nada chegará cá mas os tentáculos já cá andam.