O último debate entre os candidatos às europeias ficou resumido assim: “Aborto deixou Bugalho embaraçado no último debate a quatro” (Público); “Bugalho chocou com a esquerda por causa do aborto mas deixou um compromisso para as mulheres” (CNN); “Num debate ao ritmo dos candidatos, aborto e Von der Leyen puseram todos contra Bugalho” (Expresso)…

Bugalho disse o óbvio: a IVG é um equilíbrio entre dois direitos. Mas não disse tudo. Sobretudo não disse que nesta matéria Marta candidata desmentia Marta ministra e que Catarina Martins se fazia de esquecida por razões tácticas.

Recuemos a 10 de Maio de 2022. No parlamento a então ministra da Saúde irrita-se. Com quem? Com Catarina Martins, a então líder do BE. Em causa estava a proposta da Administração Central do Sistema de Saúde relativa a novos critérios para avaliação das equipas nas Unidades de Saúde Familiar. O Público revelara na sua primeira página que um dos critérios a utilizar nessa avaliação seria o do número de interrupções voluntárias da gravidez realizadas pelas utentes. A equipa médica perderia o direito a um valor adicional ao salário base se as pacientes tivessem feito abortos ou tivessem contraído doenças sexualmente transmissíveis nos doze meses anteriores. Como se percebe esta proposta gerou uma polémica imediata, quanto mais não fosse porque os médicos e os demais membros das equipas das Unidades de Saúde Familiar acabavam a ser penalizados por circunstâncias que não controlavam. A pedido do mesmo PSD que agora integra a coligação por que se candidata Sebastião Bugalho, e que por obra e graça mediática está transformado em ogre machista anti-direito à IVG, a 10 de Maio de 2022 Marta Temido foi à comissão parlamentar de Saúde. Foi aí que aconteceu o enfrentamento com Catarina Martins que a acusou de pretender “um policiamento do corpo das mulheres”. A ministra argumentou que se estava a tratar simplesmente duma proposta feita por uma comissão técnica, condenou “veementemente quem ache que está aqui alguma penalização ou condenação de alguma mulhere esclareceu:Acho que todos entendem que a circunstância de fazer uma IVG para as mulheres que a fizeram, e há nesta casa de certeza quem a já tenha feito, é profundamente penalizadora para a saúde física e mental. E, portanto, não considerar esse aspeto é, no mínimo, hipocrisia”

Onde está agora esta Marta Temido que em 2022 alertava para as consequências penalizadoras do aborto e chamava hipócritas aos deputados que negavam essa evidência? Agora, em 2024, no debate com Sebastião Bugalho, Catarina Martins e Pedro Fidalgo Marques, a antiga ministra da Saúde banalizou o recurso ao aborto, fazendo de conta que ser contra a equiparação a direito humano do direito ao aborto é ser contra a IVG. E Catarina Martins estará agora esquecida da tensão que este mesmo assunto provocou em 2022 entre si e a então ministra da Saúde, agora candidata do PS às europeias? Obviamente que aqui não há esquecimento algum. Mais importante ainda, ambas, independentemente do que recordem desse Maio de 2022, sabem que podem contar com o esquecimento geralmente reservado a quem fala pela esquerda. Ora em tempos de politização da memória usufruir da indulgência da desmemória é um extraordinário activo. Permite, como permitiu no debate desta sexta-feira, que se faça de conta que, em Portugal, o acesso das mulheres ao aborto está a ser posto em causa por forças retrógradas e obscuras, obviamente de direita, e não, como de facto aconteceu, pela incompetência dos seus dirigentes políticos. Convém recordar que no ano de 2022, ano em que Marta Temido foi ministra da Saúde até Setembro, pelo menos 3069 mulheres que pretendiam fazer uma IVG no SNS não foram atendidas nos cinco dias que a lei estipula como prazo máximo para o primeiro atendimento nestes casos. Mais grave: 767 dessas mulheres aguardaram entre 11 e 15 dias por essa primeira consulta. Em conclusão, se alguns governos em Portugal comprometeram o acesso à IVG de forma legal, segura e dentro dos prazos estabelecidos foram os governos socialistas de António Costa, de que Marta Temido fez parte.

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É claro que é muito mais fácil avançar para uma retórica demagógica e populista, como fez Marta Temido que, à semelhança de Catarina Martins, respondeu como se estivéssemos nos anos 60 e 70 do século passado, quando as mulheres morriam e sofriam as consequências da prática de abortos clandestinos: “Eu nem consigo explicar que sob o ponto de vista civilizacional que haja quem entende que este é um direito que não deve constar da carta dos direitos fundamentais. Mas aquilo que nos estão a dizer é escudarem-se atrás de um argumento jurídico, de um argumento de valorização de direitos. Pois bem aqui é a questão das mulheres poderem morrer mais, poderem morrer menos em função dos direitos sexuais reprodutivos que lhes sejam conferidos. Acho que não há qualquer dúvida que deveria constar porque isso seria o limiar a partir do qual os países teriam de organizar os seus sistemas.

De que sistemas e de qual limiar falaria Marta Temido? Não creio que alguém naquele debate o tenha percebido. Ou sequer a própria. Nem isso interessava. O que interessava ao frentismo de esquerda que ali se estabelecera era a criação dum antagonista. E por isso, apesar de o candidato da AD ter dito o óbvio a — IVG é um equilíbrio entre dois direitos —, havia que fazer de conta que Sebastião Bugalho estava ali a representar um retrocesso, quiçá a suspensão da despenalização do aborto. Sintomaticamente ficámos a saber o que a AD defende nesta matéria — manter a actual legislação — mas não sabemos, até porque nunca o dizem e também porque não se lhes pergunta, o que defendem os promotores da passagem do aborto a direito humano. Mas teria sido mesmo muito útil saber o que os demais  presentes naquela mesa defendem quando dizem defender o direito ao aborto enquanto direito humano.

Concordam, por exemplo, Marta Temido, Pedro Fidalgo Marques e Catarina Martins que se acabe com o direito à objecção de consciência por parte dos médicos e pessoal de enfermagem, como pretendem vários eurodeputados? É que ao transformar o aborto num direito humano faz-se equivaler a objecção de consciência a uma recusa de prestação de cuidados médicos. O resultado da proibição da objecção de consciência é a fuga de médicos e enfermeiros dos serviços públicos como forma de escapar a esta obrigatoriedade, com óbvio prejuízo para as mulheres. Mas isso nada interessa aos defensores da constitucionalização do direito ao aborto, que sofrem da mesma indiferença ao sofrimento das mulheres que aqueles que recusam o aborto em todas as circunstâncias. Só lhes interessa o absoluto da ideia que defendem.

Também não se percebeu — até porque os demais debatentes ficaram convenientemente em silêncio quando Sebastião Bugalho aludiu ao assunto — o que defendem em matéria de prazos. O candidato da AD afirmou que certamente ninguém entre os presentes defenderia o aborto aos oito meses. Ora não só há quem defenda como também quem pratique o aborto a pedido da mulher até aos oito meses, ou mesmo mais, de gestação. Nos estados norte-americanos do Alasca, Novo México, Colorado, Vermont, Minnesota tal é possível. E se baixarmos dos 8/9 meses de gestação para os 6/7 a lista alarga-se não só a vários outros estados do EUA como a países como a Colômbia, o Reino Unido ou a Finlândia. O alargamento dos prazos é neste momento a tendência, o que para quem, como é o meu caso, participou em Portugal na campanha pela descriminalização, é um absurdo. Com mais meios de diagnóstico, mais facilidades de deslocação e mais liberdade, este alargamento dos prazos é um contra-senso. Marta Temido, Pedro Fidalgo Marques e Catarina Martins  pretendem manter as actuais 10/12 semanas prevista na lei portuguesa para a realização do aborto a pedido da mulher ou pretendem alterar o prazo? Não se soube.

E assim, por obra e graça desse poder da predestinação que se concede à esquerda, está instituído que o futuro inevitavelmente trará a constitucionalização do direito ao aborto. A transformação da despenalização do aborto no imperativo da sua constitucionalização é um bom símbolo dos tempos que vivemos, aqueles em que, em nome da correcção das imperfeições das liberdades que conquistámos e dos compromisso que estabelecemos, nos impõem a desumanidade das certezas absolutas.