Um sistema político não depende apenas da Constituição, de leis e estruturas formais. Depende também de práticas e discursos que, tornados habituais, o acabam por cunhar e definir. Uma destas práticas resulta da representação espacial do confronto político, numa contenda entre esquerda e direita separadas por um centro mais ou menos vasto. Trata-se da prática do “voto útil”, ligada ao discurso muito comum de que no meio está a virtude e ao centro se ganham eleições e garante a governabilidade do país.
No sistema político português, PS e PSD, alternando no poder, desde sempre usaram e abusaram do apelo ao “voto útil”. Por isso, e porque também se consolidou entre nós a prática presidencial de indigitar o líder do Partido mais votado como Primeiro Ministro, interpretando assim o imperativo constitucional de o nomear de acordo com os resultados eleitorais, as eleições legislativas foram-se tornando numa espécie de eleição do Chefe do Governo – um “presidencialismo do Primeiro Ministro”, como lhe chamou Adriano Moreira. Cultivou-se, por isso, o imaginário de que, depositários do “voto útil”, PS e PSD estariam condenados a entender-se e repartir responsabilidades governativas, tanto no governo quanto na oposição, tornando o sistema estável e o futuro previsível. E assim foi, para o mal e para o bem, com maior ou menor concurso do CDS, ao longo da história dos nossos Governos em democracia, até às eleições de 2015. Neste ano, porém, a realidade mostrou, mais uma vez, ser sempre mais rica que a imaginação e as narrativas geradas à volta dela.
Como sabemos, as eleições de 2015 levaram a um casamento por conveniência arranjado pela incrível história de um político habilidoso que escapou às consequências do seu fracasso eleitoral tornando-se Primeiro Ministro. Para tal, teve de se furtar à prática, habitual nas relações entre PS e PSD, de assegurar ao vencedor das eleições condições para governar. Como qualquer relação interesseira, a “geringonça” durou o tempo estrito que duraria o interesse. Ou seja, durou o tempo em que comunistas tiveram a ilusão de descobrir nela um antídoto para a lenta erosão da sua influência política. Ou o tempo em que aí encontrou uma oportunidade de afirmação e crescimento a esquerda radical, a cuja agenda António Costa não hesitou em sacrificar a nossa cultura e educação. Mas durou apenas esse tempo, por mais que alguns entusiastas, incontinentes nos festejos, se apressassem a augurar uma nova e radiosa era política para a democracia portuguesa (os mesmos que agora escondem a frustração inevitável atrás de apelos, nos jornais do costume, à formação de uma “maioria plural de esquerda”).
A par de tais entusiasmos, porém, a “geringonça” deixou igualmente como herança a destruição das anteriores soluções governativas assentes na valorização do centro e do “voto útil”. É esse, no fim de contas, o seu legado mais essencial: um legado confirmado pelas eleições de 2019, que, ao darem ao PS uma maioria relativa, o instalaram definitivamente na casaca pouco cómoda de Governo depende dos humores parlamentares da extrema-esquerda. Depois de 2019, portanto, o sistema político português deixou de se basear na partilha de responsabilidades governativas por dois Partidos centristas, reciprocamente solidários e leais. Baseia-se agora, goste-se ou não, na disposição para a formação de duas frentes parlamentares, à esquerda e à direita, num quadro politicamente mais fragmentado em que todos os Partidos contam, real ou pelo menos potencialmente, para a constituição de soluções governativas.
É natural que, neste quadro, sejam os velhos partidos do centro os mais inadaptados. É natural que procurem reviver o passado e apelar ao velho “voto útil”. Só que o fazem agora sabendo-o inconsequente e disfarçando mal essa consciência. Por isso, como sempre, continuarão a invocá-lo, com a prestimosa colaboração da imprensa habitual. Mas falam de “voto útil” sem poderem oferecer, em troca dele, a estabilidade e previsibilidade que afinal o justificava. Tudo é hoje, pois, muito claro. Temos, à esquerda, António Costa, jogador hábil em transformar derrotas em oportunidades, que não teve outro recurso senão aumentar a parada e fazer um jogo de tudo ou nada: ou a maioria absoluta ou a sua deserção e as incógnitas que dela resultarem. Estamos, por isso, na situação bizarra de o previsível vencedor das eleições nenhuma solução governativa oferecer à hipótese quase certa de as vencer sem maioria absoluta. Isso poderia ser uma oportunidade para a direita, mas à direita a situação não é melhor.
O insólito estado da direita começou por se tornar claro, há tempos, com uma espécie de haraquíri público, quando uma direita cosmopolita, liberal e bem pensante, para protestar contra o natural crescimento do Chega, resolveu manifestar-se nos termos da extrema-esquerda, incorporando os seus irritantes melindres, os ares de superioridade moral e a costumeira prática de desqualificação moral de adversários políticos. Mas não lhe chegou submeter-se à hegemonia lexical da esquerda e servir de idiota útil à estratégia desta para impedir diálogos à direita. Intensificando a mesma linha e lançadas as eleições, o PSD, recolocado ao centro por Rui Rio, achou por bem recusar acordos com o CDS e a votá-lo assim a uma luta fratricida, que é sempre a mais terrível e desesperada das lutas, contra o Chega. Depois de tudo, como se tal não bastasse, o mesmo Rio insiste agora em que, perdendo as eleições, usará os deputados eleitos pelo PSD para viabilizar um Governo socialista. É, como diria Camões, o desconcerto do mundo.
A insistência de Rui Rio em cortejar o PS, é certo, pode indubitavelmente valer-lhe uma imagem imediata de simpatia, boa vontade, honestidade e abertura. Mas tudo cai por terra quando, diante de um jogador mudo e esfíngico, se percebe que o faz, afinal, sem qualquer reciprocidade. Ou seja, tudo se desvanece quando António Costa o obriga a assumir o papel de uma espécie de namorado submisso, como um pobre amante que, traído mas dependente, pede desculpas por tê-lo sido para conservar os favores da infiel namorada. Colocar o PSD nesse papel não augura, nem à direita nem ao país, nada de bom. Apenas nos dá uma certeza: a de que “votar útil” à direita é, desta vez, a coisa mais inútil que há.