A requerimento potestativo do PS, foi agendada para a ordem do dia da Reunião Plenária do dia 10 de Janeiro a discussão do Projeto de Lei n.º 264/XVI/1ª, que “Procede à 3.ª Alteração à Lei n.º 16/2007, de 17 de abril alterando alguns dos requisitos para a realização da interrupção voluntária da gravidez não punível e densificando o regime de exercício do direito individual de objeção de consciência”.
Tal discussão será seguida da respectiva votação na generalidade, em sede de votações regimentais.
Através do meu artigo de opinião intitulado “O aborto socialista” (aqui publicado) tive oportunidade de analisar o referido projecto de lei e de chamar a atenção para algumas (de entre muitas) das razões, políticas, jurídico-constitucionais, éticas e deontológicas que impõem a firme recusa das alterações propostas pelo PS, quer ao art. 142º (“Interrupção da gravidez não punível”) do Código Penal, quer aos arts. 2º (“Consulta, informação e acompanhamento”) e 6º (“Objecção de consciência”) da Lei nº 16/2007, de 17.04 (vulgo Lei da IGV).
Refira-se que o referido projecto de lei mereceu, quanto à maioria das suas normas e alterações propostas, parecer desfavorável, quer do CNEDM – Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos, quer do CNECV – Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
O presente artigo não se destina, contudo, a revisitar o tema em termos substanciais ou materiais, mas antes a denunciar a leviandade e ligeireza com que, ao abrigo de algumas normas regimentais, foram (à boleia) arrastados para as referidas discussão e votação na generalidade outras iniciativas legislativas entretanto apresentadas por deputados de outros grupos parlamentares, com a consequente e inerente eliminação de vários passos e fases fundamentais do processo legislativo comum, em claro e manifesto prejuízo da qualidade da actividade parlamentar e, assim, da democracia representativa e do Estado de Direito. Senão vejamos.
O referido projecto de lei do PS deu entrada na Assembleia da República (AR) no dia 17.09.2024, tendo sido admitido a 20.09.2024.
Em cumprimento e nos termos previstos no Regimento da Assembleia da República, seguiram-se os vários passos e fases do processo legislativo que antecedem a discussão e votação na generalidade:
- O diploma foi admitido, na sequência de ter sido emitida pelos serviços da AR a respectiva Nota de Admissibilidade;
- O diploma baixou à comissão parlamentar competente para a sua apreciação (a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias), em conexão com a Comissão da Saúde;
- Foi pedido parecer a várias entidades externas à AR, a saber, o Conselho Superior da Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público, a Ordem dos Advogados, a Ordem dos Médicos e o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida;
- Foram recebidos os pareceres emitidos pelas referidas entidades externas consultadas;
- Foi emitido pela 1ª comissão, após a devida apreciação e aprovação, o respectivo relatório e enviado o mesmo ao Presidente da Assembleia da República (PAR), conjuntamente com a Nota Técnica emitida pelos serviços da AR; e
- Foi o diploma publicado no Diário da Assembleia da República.
Entretanto, no dia 08.10.2024, o Bloco de Esquerda apresentou um projecto de lei sobre a mesma matéria, o Projecto de Lei nº 324/XVI/1ª, que “Altera a Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, sobre a exclusão de ilicitude nos casos de interrupção voluntária de gravidez”.
Também em relação ao diploma do BE foram seguidos os passos e fases do processo legislativo acima elencados.
Na reunião da Conferência de Líderes realizada no dia 18.12.2024, foram os grupos parlamentares informados que o PS havia requerido, como era seu direito, um agendamento potestativo de fixação da ordem do dia para a Reunião Plenária a realizar no dia 10 de Janeiro de 2025, tendo o PS esclarecido que o mesmo incidiria sobre o Projecto de Lei n.º 264/XV/1.ª.
Deste modo, entre a data em que o referido diploma foi apresentado e a sua discussão e votação na generalidade mediará cerca de quatro meses, tempo que, sem prejuízo da especial natureza e importância da matéria em causa, é ou pode ser suficiente para uma adequada e ponderada apreciação do seu teor, com vista a uma tomada de posição consciente e informada por parte dos deputados, indispensável ao exercício responsável do mandato democrático representativo que lhes foi conferido pelo povo português.
Nada disto se passa com os diplomas (com excepção do diploma do BE) que por arrastamento, a pedido dos seus proponentes, também vão ser discutidos e votados no dia 10 de Janeiro, a saber, o Projecto de Lei nº 324/XVI/1ª (BE), o Projecto de Lei nº 403/XVI/ª (PCP), o Projecto de Lei nº 405/XVI/ª (PAN), o Projecto de Lei nº 408/XVI/ª (CDS-PP), Projecto de Lei nº 410/XVI/ª (L), Projecto de Lei nº 412/XVI/ª (CH), o Projecto de Resolução nº 513/XVI/ª (PCP), o Projecto de Resolução nº 514/XVI/ª (L) e o Projecto de Resolução nº 517/XVI/ª (CH).
E não se passa porque em relação a estes oito diplomas não foram seguidos os vários passos e fases do processo legislativo que se mostram necessários e fundamentais para efeitos de uma fundada análise e discussão democrática dos mesmos, quer pelos deputados e respectivos grupos parlamentares, quer pela sociedade civil, com vista a uma boa elaboração das leis.
Com efeito, os referidos diplomas apenas deram entrada na AR na passada sexta-feira, dia 3 de Janeiro, tendo sido admitidos no dia 6 de Janeiro.
Estes diplomas vão, assim, ser discutidos e votados na generalidade pelos deputados, sem estes terem tido tempo para os apreciar devidamente, como se espera e exige num verdadeiro Estado de Direito, e sem que a sociedade civil e os cidadãos em geral tenham tido oportunidade de os conhecer convenientemente e de sobre eles se pronunciarem, como se espera e exige num verdadeiro Estado Democrático.
E nem se diga que a “culpa” é das normas regimentais que permitem que isto aconteça, por exemplo, nos casos dos agendamentos realizados por arrastamento com um agendamento inicial resultante do exercício de um direito potestativo, como é o caso.
É verdade que, nos termos previstos na actual redacção do Regimento da Assembleia da República, “Nos casos de agendamentos prioritários e potestativos podem ser agendadas por arrastamento iniciativas que deem entrada até sexta-feira da semana anterior à data designada para a discussão, e desde que posteriormente admitidas, devendo o pedido dar entrada até à mesma data” (art. 65º, nº 2) e que “É condição do agendamento por arrastamento o reconhecimento pelo Presidente da Assembleia da República da existência de efetiva conexão material entre objeto dos projetos e propostas a arrastar e o objeto do agendamento inicial” (art. 65º, nº3).
A possibilidade de poderem ser agendadas por arrastamento iniciativas que dêem entrada na AR até à sexta-feira da semana anterior à data designada para a discussão tem obviamente como consequência a impossibilidade de serem cumpridos os demais passos e fases do processo legislativo prévios à discussão e votação na generalidade dos diplomas.
Essa impossibilidade e esse incumprimento são, no entanto, em minha opinião, incompatíveis com uma produção legislativa de qualidade e, nessa medida, inadmissíveis num verdadeiro Estado de Direito Democrático.
O Regimento da Assembleia da República foi aprovado pelos deputados. Compete-lhes, assim, proceder à alteração das normas que sejam manifestamente desadequadas e/ou desconformes com os valores de qualidade, transparência e democraticidade do processo legislativo.
As normas respeitantes aos agendamentos realizados por arrastamento com agendamentos potestativos são um bom exemplo, porque péssimo, de tais normas, pelo que deviam as mesmas ser alteradas.
Mas enquanto o não forem, devem, ou pelo menos deviam, os deputados não aplicar tais normas, muito em particular sempre que estiverem em causa matérias de especial importância, gravidade ou sensibilidade, como manifestamente é o presente caso.
Não existe matéria de maior importância, gravidade e sensibilidade do que aquela que respeita à vida ou morte de seres humanos, ainda que apenas vivam dentro de suas mães.