Após terem sido aprovados, na generalidade, os vários projectos de lei que pretendem despenalizar e legalizar, em certas situações, o “homicídio a pedido da vítima” e a “ajuda ao suicídio” (errónea mas deliberadamente designados por “morte medicamente assistida”), várias entidades da sociedade civil, entre as quais a Federação Portuguesa pela Vida, a Associação Juntos pela Vida, a Associação dos Médicos Católicos, a Associação dos Juristas Católicos e o Movimento Stop Eutanásia, entre outras, apresentaram pedidos de audiência à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (a 1ª Comissão), nos competentes termos constitucionais, legais e regulamentares, por forma a poderem dar o seu contributo para o processo legislativo em causa.

Tais pedidos foram, no entanto, recusados pelo grupo de trabalho entretanto constituído, o denominado “Grupo de Trabalho – Morte Medicamente Assistida Não Punível (PJLs 5/XV, 74/XV, 83/XV e 111/XV)”, por este ter decidido/deliberado, na sua reunião de 7 de Julho, “não ouvir entidades que já tenham sido recebidas ou enviado contributos escritos em fases anteriores da discussão desta matéria, e tendo em conta que o registo dos contributos e intervenções de V. Exas sobre o assunto em discussão se encontram disponíveis publicamente, não serão repetidas consultas já efetuadas.

Por considerar que tal deliberação era, e é, totalmente infundada e injustificada e, por isso mesmo, inaceitável, sendo contrária não só à verdade dos factos, como a normas constitucionais, regimentais e regulamentares aplicáveis, à prática consuetudinária parlamentar e inclusive a deliberações anteriores tomadas pela 1º Comissão no âmbito das referidas iniciativas legislativas, decidiu a Federação Portuguesa pela Vida (FPV)  (e, bem assim, a Associação Juntos pela Vida), apresentar recurso da mesma para a 1ª Comissão, tendo-me sido pedido para colaborar na preparação do referido recurso.

Tal recurso foi apresentado à 1ª Comissão na qualidade de titular originário das competências que foram delegadas no Grupo de Trabalho, competências essas que podem a todo o momento ser avocadas pela 1º Comissão e, que além do mais, lhe conferem poderes para apreciar e revogar as deliberações que sejam tomadas pelo Grupo de Trabalho, muito em particular quando as mesmas sejam inválidas, infundadas e/ou injustificadas, e, bem assim, para emitir directivas ou instruções sobre o modo como devem ser exercidas as competências delegadas.

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No recurso apresentado (no dia 11 de Julho), foram enunciados vários motivos que impunham (e impõem) a revogação da deliberação tomada pelo Grupo de Trabalho e a concessão da audiência pedida:

1º – A deliberação em causa não foi tomada por consenso do Grupo de Trabalho, tendo merecido a oposição do deputado representante do partido Chega nas reuniões de trabalho. Ora, de acordo com o nº 1 do art. 33º do Regulamento da 1º Comissão, “As Subcomissões e os grupos de trabalho não têm poder deliberativo, salvo quanto a matéria processual, quando haja consenso”.

Admitindo que a matéria das audiências a conceder é matéria processual, e não tendo havido consenso quanto a esta matéria, não tinha o Grupo de Trabalho poder para tomar a deliberação que tomou, sendo esta inválida por violação da citada norma regulamentar e falta de poder deliberativo.

 

2º – Não corresponde à verdade que a FPV já tenha sido recebida ou enviado um contributo escrito “em fases anteriores da discussão desta matéria”, na medida em que a matéria em discussão é a que consta dos projectos de lei nºs 5/XV, 74/XV, 83/XV e 111/XV e sobre estes projectos de lei nunca a FPV foi recebida na Assembleia da República, nem deu o seu contributo escrito sobre os mesmos. Não tendo a FPV sido ouvida, a sua audiência não implica, nem implicará, a repetição de consulta já efectuada.

3º – Ao justificar a recusa da audiência pedida alegando que a FPV já se pronunciou “em fases anteriores da discussão desta matéria”, entendendo-se por “fases anteriores da discussão desta matéria” as fases ocorridas na anterior legislatura (a XIV) por referência aos processos legislativos respeitantes aos projectos de lei nºs 4/XIV, 67/XIV, 104/XIV, 168/XIV e 195/XIV, o Grupo de Trabalho extravasou, de modo evidente e inadmissível, o âmbito da sua actuação, a tarefa que lhe foi cometida e as competências que lhe foram delegadas pela 1ª Comissão.

O Grupo de Trabalho foi constituído pela 1ª Comissão para conduzir os trabalhos de apreciação na especialidade do processo legislativo respeitante aos projectos de lei nºs 5/XV, 74/XV, 83/XV e 111/XV, e não a quaisquer outros, por maioria de razão, da anterior legislatura.

4º – O facto de a FPV ter sido ouvida na anterior legislatura sobre os projectos de lei nºs 4/XIV, 67/XIV, 104/XIV, 168/XIV e 195/XIV, e de existir um registo público dessa audiência, não tem, nem pode ou deve ter, qualquer relevância para o presente processo legislativo, uma vez que nos encontramos numa nova legislatura, a XV, e as iniciativas legislativas que foram apresentadas, discutidas, votadas e vetadas na anterior legislatura caducaram com o seu termo, o dia 28 de Março de 2022.

Com a ocorrência da referida caducidade, nada transitou ou transita dos anteriores processos legislativos para os actuais, nem os textos legislativos, seja os inicialmente apresentados, seja o texto final consensualizado, nem os pareceres, nem as audições, nem as audiências, nem as votações, nem os vetos.

Os projectos de lei nºs 5/XV, 74/XV, 83/XV e 111/XV consistem, assim, em novas iniciativas legislativas, apresentadas numa nova legislatura e que se destinam a ser apreciadas, discutidas e votadas por uma nova Assembleia, composta por mais de um terço de novos deputados, devendo ser seguidos os passos normais previstos no Regimento da Assembleia da República para o processo legislativo comum, sob pena de se terem por violadas as normas constitucionais e regimentais aplicáveis.

Defender o contrário, i.e., que estas iniciativas legislativas apenas vêm concluir o anterior processo legislativo, e agir em conformidade com tal erróneo e ilegal entendimento, para além de acarretar um desrespeito de normas constitucionais e regimentais aplicáveis, revela uma profunda falta de consideração e respeito democráticos pela instituição parlamentar, pela nova Assembleia e, mais grave ainda, pela sociedade portuguesa.

5º – O facto de os deputados dos partidos proponentes das novas iniciativas legislativas não terem apresentado e subscrito um único texto, consensualizado entre todos, mas antes quatro projectos de lei, projectos esses que têm diferenças entre si, mostra bem, entre outras razões, que os próprios deputados proponentes sabem que estamos em presença de novos processos legislativos. Nessa medida, não deve ser permitido que, através de deliberações tomadas pelo Grupo de Trabalho, sejam ultrapassadas fases do processo legislativo parlamentar.

6º – Precisamente porque nada transitou da anterior legislatura para a actual, é que foram novamente solicitados pela 1ª Comissão, na fase de apreciação na generalidade, pareceres a diversas entidades relativamente aos projectos de lei nºs 5/XV (BE), 74/XV(PS) e 83/XV(PAN), apesar de tais entidades já terem emitido pareceres na anterior legislatura, só não tendo sido solicitados pareceres em relação ao projecto de lei nº 111/XV (IL) porque o mesmo deu entrada poucos dias antes de ter ocorrido a votação na generalidade, agendada potestivamente pelo PS.

A deliberação tomada pelo Grupo de Trabalho contraria, assim, de modo evidente, as deliberações que foram tomadas pela 1º Comissão no âmbito dos processos legislativos respeitantes às referidas iniciativas legislativas.

 

7º – Tal como aconteceu na anterior legislatura, e atendendo à complexidade da concreta matéria em discussão, deve o Grupo de Trabalho, nesta fase de apreciação na especialidade, proceder à audição das entidades que considere útil ou necessário, e, bem assim, conceder audiências às entidades da sociedade civil que o solicitaram, como foi o caso, entre várias outras, da FPV, e aos cidadãos e entidades que ainda o venham a solicitar.

A promoção e/ou permissão da auscultação da sociedade civil e a recolha dos contributos dos interessados encontra-se prevista na letra e no espírito de várias normas regimentais e regulamentares aplicáveis, como é o caso, por exemplo, dos arts. 102º, nº 2, 103º, nº 1, 104º, nºs 1 e 2 e 140º, nº 3 do Regimento da Assembleia da República, e dos arts. 4º, nºs 1, 2, al. d) e h), 16º e 26º do Regulamento da 1ª Comissão; como decorre de várias normas constitucionais, tais como os arts. 48º, 52º, nº 1 e 178º, nº 3.

8º – A não auscultação da sociedade civil e a não recolha, por parte do Grupo de Trabalho, dos contributos que os cidadãos e/ou grupos de cidadãos desejem dar, viola, além do mais, de modo flagrante, a prática parlamentar desde há dezenas de anos, uma vez que foram sempre deferidos os pedidos de audiência formulados por entidades cujo âmbito de actuação ou interesse coincida com a matéria legislativa em processo de discussão.

A deliberação tomada pelo Grupo de Trabalho contraria, assim, de modo inaceitável, uma prática consuetudinária parlamentar, em manifesto detrimento da democracia participativa e do direito dos cidadãos de tomar parte na vida política e pública do país, muito em particular numa matéria desta importância.

9º – Apesar de toda a celeridade que está a ser conferida a este processo legislativo, e mesmo tendo presente a mesma, existe tempo mais do que suficiente para que sejam realizadas essas audições e concedidas essas audiências.

Refira-se, aliás, que, no passado dia 15 de Julho, o Grupo de Trabalho realizou uma audição e concedeu uma audiência. E quanto à audiência concedida, ao psiquiatra Dr. José Gameiro, importa referir que a mesma foi pedida pelo próprio na mesma altura em que também a Associação dos Psicólogos Católicos pediu para ser ouvida. Ora, o Grupo de Trabalho, de forma totalmente discriminatória e parcial, decidiu ouvir presencialmente o Dr. José Gameiro, enquanto que à Associação dos Psicólogos Católicos apenas foi dada a possibilidade de enviar um contributo escrito.

10º – A auscultação da sociedade civil, seja através de audições a realizar, seja de audiências a conceder, é tão ou mais justificada se tivermos presente que os projectos de lei nºs 5/XV, 74/XV, 83/XV e 111/XV contêm algumas importantes e substanciais alterações relativamente aos textos apresentados, discutidos, votados e vetados na anterior legislatura.

Entre essas alterações figura à cabeça o abandono da exigência da existência de uma “doença fatal”, o que altera, de modo decisivo e determinante, o âmbito e o alcance normativo do diploma, sendo que, no caso do projecto de lei nº 74/XV (PS) também ocorre a eliminação de toda e qualquer referência à expressão ou ideia de “antecipação” da morte, o que levou à alteração de 26 dos 33 artigos do texto do diploma relativamente ao texto anterior.

Por outro lado, as entidades da sociedade civil que foram ouvidas na anterior legislatura também não tiveram oportunidade de se pronunciar sobre o artigo das definições (art. 2º), uma vez que este artigo só foi incluído no texto final consensualizado na anterior legislatura. Ora, este artigo é absolutamente determinante do âmbito e alcance normativo dos diplomas que estão em discussão.

11º – Os projectos de lei nºs 5/XV, 74/XV, 83/XV e 111/XV têm merecido, da parte da sociedade civil, muitas e sérias críticas, quer por quem é contra a despenalização e legalização da eutanásia e do suicídio assistido, quer inclusive por quem é a favor mas discorda da formulação constante dos projectos de lei em discussão, atentas as suas múltiplas falhas e insuficiências.

Nessa medida, os deputados e o Grupo de Trabalho têm o dever de ouvir os cidadãos e os movimentos da sociedade civil que desejem ser ouvidos pelo parlamento, não apenas pela gravidade da matéria em causa, mas também pelo respeito do direito de participação política dos cidadãos no processo legislativo.

12º – Por último, não existe qualquer situação de urgência ou premência social, ou sequer de necessidade, que possa justificar e/ou reclamar qualquer rapidez ou celeridade neste processo legislativo, sendo que imprimir uma excessiva celeridade não se mostra compatível com a natureza, a sensibilidade e a importância, social e nacional, da matéria em discussão, matéria de indiscutível relevante interesse nacional.

Bem pelo contrário, a urgência que existe é em assegurar a prestação atempada e adequada de cuidados de saúde (primários, continuados e paliativos) a todos os cidadãos e não em oferecer-lhes a morte provocada e/ou antecipada como “opção/solução” para a resolução dos seus problemas de saúde, problemas esses que manifestamente o Estado se tem revelado incapaz de resolver e/ou de atenuar.

Tudo isto, não só aconselhava, como impunha, o deferimento do recurso apresentado, por forma a que sejam seguidos todos os trâmites normais do processo legislativo comum, no respeito pelas normas constitucionais, regimentais e regulamentares aplicáveis, pela prática parlamentar e principalmente no respeito pela sociedade portuguesa e pelos direitos constitucionais dos cidadãos.

Malogradamente, não foi isso aconteceu. Com efeito, no passado dia 20 de Julho, o Presidente da 1ª Comissão informou que, na reunião desta comissão ocorrida no dia 14 de Julho, Após debate com a participação de Deputados do PS, PSD, CH e IL, e apesar da oposição do Partido CHEGA, concluiu a Comissão não ser passível de impugnação por parte de cidadãos uma decisão de um grupo de trabalho constituído por uma Comissão Parlamentar.

Deste modo, a 1ª Comissão não concluiu pela falta de fundamento do recurso apresentado, nem, em consequência, concluiu pela validade e legalidade da deliberação tomada pelo Grupo de Trabalho: a 1ª Comissão pura e simplesmente decidiu não apreciar o recurso, invocando, para o efeito, que os cidadãos não têm o direito de impugnar uma decisão de um grupo de trabalho constituído por uma Comissão Parlamentar.

Esta decisão da 1ª Comissão é, a todos os títulos, lamentável: por um lado, porque a mesma implica uma inadmissível e inaceitável renúncia às suas próprias competências e ao seu exercício. Ora, as competências que foram atribuídas à 1ª Comissão pelas normas constitucionais, regimentais e regulamentares são irrenunciáveis.

Por outro lado, porque o exercício das competências da 1ª Comissão, pela própria Comissão, impunha-se no presente caso, por maioria de razão, uma vez que a deliberação tomada pelo Grupo de Trabalho é inválida, infundada, injustificada e discriminatória e viola direitos constitucionais dos cidadãos.

Por outro lado, ainda, ao contrário da conclusão a que chegou a 1ª Comissão, os cidadãos têm efectivamente o direito de impugnar, i.e., contestar, opor-se, refutar, uma decisão de um grupo de trabalho constituído por uma comissão parlamentar, como, aliás, têm o direito de impugnar decisões tomadas pelas próprias comissões parlamentares, tendo, por isso, o direito a ver apreciadas e decididas as suas impugnações/contestações/oposições.

Recorde-se que, em concretização do direito de participação política na vida pública (art. 48º da CRP), “Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respectiva apreciação (art. 52º, nº 1 da CRP).

E precisamente porque os cidadãos têm esses direitos é que as entidades que viram os seus recursos não serem sequer apreciados, decidiram apresentar uma queixa ao Presidente da Assembleia da República, reiterando o pedido de audiência antes formulado.

Aprofundar a democracia participativa, conforme se encontra estatuído no art. 2º da CRP, pressupõe e impõe que se promova a participação e intervenção dos cidadãos, a título individual ou através de associações e organizações sociais ou profissionais, nas tomadas de decisão das instâncias do poder e nos próprios órgãos do poder.

Os deputados podem querer eutanasiar a democracia participativa, transformando-a numa “democracia” selectiva e discriminatória, escolhendo quem deixam participar e principalmente quem não deixam. Mas de uma coisa podem ter a certeza: irão ter oposição.