Sabe-se que, desde 2019, a União Europeia produziu um vasto oceano de legislação sob a rubrica do “mercado único digital”, que lhe confere amplos poderes de censura e de vigilância online. Esta pulsão regulatória é sempre anunciada como “histórica” e “sem precedentes”, desprovida de qualquer autocrítica, tão exagerada que chega a ser surreal.

Na base destas recentes iniciativas de regulação de plataformas digitais está a ideia de abolir qualquer espaço intermediário, que é o espaço para a reacção a uma decisão tomada de cima: sem tempo para se opor, o cidadão sofrerá a pena e pronto. É a ruptura, a desintermediação do Estado de Direito.

O método von der Leyen para atingir este propósito é absurdamente simples. Consiste em montar uma grande encenação em torno de um suposto mal social urgente, para depois chamar a si a necessidade urgente de intervir, na forma de um bloqueio preventivo, com o mínimo de conscientização pública possível (não é por acaso que hoje mais de 85% da legislação europeia é negociada através do chamado “trílogo”, à porta fechada).

Em resultado, qualquer legislação aprovada funciona como um estrangulamento para qualquer liberdade e qualquer direito, atribuindo indefinidamente um novo e radical poder à Comissão Europeia (e aos governos) sobre os cidadãos, que lhe permite exercer um controlo social cada vez maior e reduzir os espaços de liberdade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Vimos isso, por exemplo, no Regulamento relativo ao combate à difusão de conteúdos terroristas, doravante “TERREG”, aprovado à porta fechada, que “visa assegurar o bom funcionamento do Mercado Único Digital numa sociedade aberta e democrática, combatendo a utilização abusiva dos serviços de alojamento virtual para fins terroristas e contribuindo para a segurança pública em toda a União”. Assim, o regulamento permite aos Estados-membros ordenar a retirada de conteúdos de carácter terrorista no prazo de uma hora. Visto assim parece uma prova de eficiência diante de uma potencial ameaça terrorista, mas se reflectirmos sobre os métodos de aplicação do TERREG o quadro torna-se tenebroso. Primeiro porque é impossível para as plataformas cumprir com a obrigação de remoção dentro do prazo exigido, sem recorrer a sistemas de filtragem algorítmicas. Depois porque, não podendo os algoritmos estabelecerem correctamente se estamos na presença de activismo, dissidência, ecoterrorismo, minorias nacionalistas ou religiosas, discursos de ódio ou sátira de conteúdo considerado terrorismo em si, quantidades enormes de conteúdos legítimos são removidas para evitarem ter de responder pela presença de conteúdos questionáveis, com efeitos devastadores sobre os direitos fundamentais, que ficam assim subordinados aos interesses económicos destas empresas. Ademais, o TERREG transfere para as plataformas privadas a tarefa judicial e ideológica de estabelecer o que é terrorismo e o que não é, o que é jornalismo e o que não é, o que é sátira e o que não é, e assim por diante. Ao fazê-lo cria uma espécie de estado paralelo e sobreposto ao nosso Estado, que não responde perante nenhum Estado nem está obrigado a cumprir ou a respeitar leis ou convenções internacionais sobre direitos fundamentais. Mas não só. O TERREG foi também projectado para casos transfronteiriços, o que significa que qualquer “autoridade nacional competente” (extrajudicial, portanto) designada pelos Estados-membros pode ordenar a remoção de conteúdos carregados por qualquer utilizador no espaço europeu, sem qualquer controlo judicial preventivo. Então pode acontecer que um ministério húngaro, por exemplo, ordene à autoridade competente portuguesa a remoção de vídeos, imagens ou conteúdos que criticam seu o governo (para os regimes autoritários, terroristas são aqueles que o criticam); ou para bloquear determinado site ou utilizador; ou a remoção de dissidências, controvérsias políticas ou até formas de desobediência civil.

A ironia disto tudo é que o TERREG diz que se rege pelo respeito pelas regras democráticas, mas depois não respeita essas mesmas regras, pois viola de forma grosseira o artigo 11.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, que estipula: “Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.

O mesmo acontece com o regulamento intitulado Acto dos Serviços Digitais, a seguir “DSA”, aprovado no passado mês de Abril, que “visa contribuir para o bom funcionamento do mercado interno de serviços intermediários e estabelecer um ambiente em linha seguro, previsível e fiável, protector de direitos fundamentais”, isto é, contra quaisquer decisões arbitrárias. Porém, toda a sua estrutura, edificada ao longo das suas mais de 120 páginas, faz com que o TERREG pareça inofensivo, perante a sua monstruosa capacidade censória, ao ponto de não se conseguir distinguir de instrumentos jurídicos usados pelos governos totalitários para silenciar a dissidência. Na prática, o DSA foi concebido para fazer da Comissão Europeia o único árbitro da legalidade e da verdade online. Não admira, por isso, que tenha sido anunciado pela senhora von der Leyen como” histórico”. É que ele permite à Comissão Europeia declarar unilateralmente, isto é, sem ter de consultar os Estados-membros, um estado de crise (emergência) para toda a União Europeia, através dos chamados “protocolos de crise” – disposição negociada à porta fechada através do trílogo. Este dispositivo dá à Comissão Europeia o poder de exercer um controlo directo sobre os conteúdos online, a obrigar as plataformas a tomar medidas “eficazes” para eliminar ou limitar todo o tipo de conteúdos que venha a considerar “indesejável”, “prejudicial” ou “questionável” ainda que verdadeiros.

O pretexto, para a sua introdução, foi a invasão russa na Ucrânia, mas, mesmo no léxico opaco e vago do texto, é difícil ler neste ponto algo que não seja o desejo da Comissão Europeia de impor uma “verdade” imutável e indiscutível. Basta pensar na decisão “sem precedentes” de von der Leyen para silenciar os canais RT e Sputnik, alegando desinformação capaz de desestabilizar as democracias ocidentais, tão fortes e consolidadas que se sentem ameaçadas por dois canais televisivos. Paradoxalmente, a mesma desinformação para uso e consumo dos cidadãos europeus se espalha ao declarar falso tudo o que vem de certas fontes.

Outro ponto que não se sustenta no DAS é aquele que diz respeito ao princípio de que “o que é ilegal no mundo real, deve ser ilegal no mundo online também”, que o DSA pretende consagrar, uma vez que confia às plataformas a avaliação da licitude ou não de um conteúdo a ser removido, com base nas determinações céleres e contundentes de um algoritmo (excepto quando em causa estiverem reclamações de utilizadores devidamente identificados), sem a necessidade de controlo judicial que é obrigatório offline. Então o regulamento submete cada utilizador a viver sob vigilância e julgamento constantes, ignorando a disposição que proíbe os governos de solicitar serviços online para espiar seus utilizadores o tempo todo, consagrada no art. 15.º da Directiva do Comércio Electrónico, (que o DSA actualiza) e a disposição do RGPD, que estipula que “as pessoas não devem ser sujeitas a uma decisão baseada exclusivamente em tratamento automatizado (como algoritmos), a não ser com o seu consentimento expresso”.

Com a proposta de regulamento relativa à prevenção e combate ao abuso sexual de crianças, conhecido como “Chat Control”, apresentada no passado dia 11 de Maio, a Comissão dá mais um passo à frente, ao propor uma vigilância preventiva em massa. Aqui, a Comissão Europeia pretende utilizar massiva e indiscriminadamente sistemas inovadores de Inteligência Artificial para controlar mensagens, inclusive mensagens criptografadas de ponta a ponta, fotos, vídeos de natureza sexual (independentemente de constituírem ou não uma hipótese de crime ou abuso) e e-mails dos cidadãos europeus, bem como a correspondência trocada com médicos, psicólogos, advogados, que deveriam ser protegidos pelo sigilo profissional. Tudo isto para combater uma minoria mal-intencionada. Tudo isto sem necessidade de obtenção de autorizações judiciais. Tudo, obviamente em nome da democracia e do Estado de Direito.

Esta proposta encontra-se actualmente sob grande contestação, não se sabendo se vai ou não ser aprovada.

Mas que esta seja a linha orientadora da União Europeia, a sua ideologia e o seu cânone é a confirmação de que, por detrás de toda esta regulação, está o medo de muito espaço concedido aos cidadãos, a possibilidade excessiva de poder expressar a sua opinião e falar livremente online. Daí a necessidade de criar uma jaula virtual, a fim de regular e limitar as comunicações entre os cidadãos, à semelhança do que acontecia com os meios de comunicação tradicionais. Sim, porque a democracia é boa, a liberdade de expressão é boa, a liberdade de informação é boa, mas não há necessidade de subestimá-las tanto. Desde que von der Leyen assumiu a presidência da Comissão Europeia, a liberdade passou a ser um luxo que não pode ser permitido. Esta é a única explicação que encontramos para este frenesim legislativo sob a rubrica do “mercado único digital”. Caso contrário, devemos pensar que a União Europeia realmente considera que basta remover um conteúdo aqui e ali para assustar os verdadeiros terroristas, criminosos e pedófilos.

Outros exemplos legislativos podem ser encontrados nos seguintes endereços:
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L0770,
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L0771,
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L0790&from=SL,
https://eurlex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52018PC0238,
https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:52020PC0593&from=PT,
https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/data-governance-act,
https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/european-digital-identity_pt,
https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/digital-markets-act-ensuring-fair-and-open-digital-markets_pt,
https://europa.eu/citizens-initiative/initiatives/details/2021/000001_en
,
https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_22_85.